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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças
Mostrando postagens com marcador O jogador de cartas by Pablo Picasso. O jogador. Mostrar todas as postagens
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14 setembro, 2007

O Jogador

Treme-lhe a mão e o olhar. Pisca a pálpebra. Enruga a testa. Humedece os lábios. Enrola os ombros. Contém a respiração e sorri. Sorri friamente no olhar gelado. Os lábios são um traço. Os olhos semi-cerram-se. Avalia a situação. Tamborilam os dedos na dança das cartas.

Não é novo, nem velho. É indefinido. O fato escuro dança-lhe no corpo magro, seco, torcido de tanto sentado na mesa de jogo. O cabelo negro puxado para trás deixa liberta uma fronte magnânima. A tez é alva. Demasiado. Falta-lhe a cor do ar. É esguio sem ser alto. Tudo nele é fugidio e expectante. Caetano José mais uns tantos apelidos dão-lhe a identificação. Sabe quem é, e de onde vem. Para onde vai não tem a certeza, e muito menos, os meios.

São três da tarde. Deveria estar no gabinete. Batem à porta. Abrem. A sala está vazia. Como sempre Os papéis repetem a ordem do silêncio manual. Mais um dia. O colega amigo abana a cabeça, o rosto reflecte a tristeza. Caetano vai ser despedido. Não o vai poder evitar mais. Lentamente suspira e fecha a porta do gabinete. Percorre o corredor e perde-se nele. Lá em baixo está o Director. Que vai dizer?

Á mesma hora, Caetano José joga …desesperadamente na angústia febril do reaver. Nada, nada. A última mão. São só mais cinco minutos. A rapidez rodopia na acção e na pressão. A emoção esboça-se no instante e …foi-se. Uma vez mais. As mãos enclavinham-se no bordo da mesa. As veias sobressaem-lhe na fronte pálida. Latejam. Não no desespero ,mas na raiva. Caetano é um homem de raivas, fúrias e lampejos febris. Repele e golpeia com palavras e desdém. Pensa de si, ser o melhor. Sabe que erra mas não admite ser julgado ou admoestado. Nunca o suportara. Sempre se revoltara. Sempre. Não conhecera o pai. Fora-se no mar. Em navio de guerra. Era oficial da marinha. A mãe, grávida e ainda de núpcias nunca mais o vira. Nascera. Crescera. Fora educado em colégio. Fugia. A viola e a sua Lisboa …”boémia, fadista “povoavam-lhe os sentidos e as horas. E de viola, serenata e encantos colhera a sua Margarida.

Filha de família, sim senhor, porque ele, também o era. Menina prendada, extremosa, cuidadosa e amorosa. Tantos rendilhados para uma vida de burel. Margarida roliça, de olhar azul em dia triste e cabelos fulvos será sempre o seu carteio. Triste sina. Linhas cruzadas na mão de um lance desafiador que a derrotara, o jogo, as cartas. A amante era por demais muda e viciante .A miséria já batia à porta e ela, a amante, não se largava. As paredes da casa, em tempos recheadas, estavam esquálidas. O dinheiro não havia. As crianças, quatro, a caminho da quinta, tinham os pés descalços. Não suplicava, não chorava, não gritava. Aceitava. Pensar que um dia fora menina de cabriolet. Hoje, os pés nas botinas puídas e esticadas onde os buracos da sola eram tapados com cartão, percorriam as calçadas num vai e vem de trabalho de agulha. Caetano, seu marido, sedutor da sua alma, lascívia da sua alcova, tirano de compreensão, cruel de palavra e irado de olhar. O pai dos seus filhos. Pai temido e não amado.

Caetano José, funcionário dos C.F. faltoso, ardiloso e calão. O trabalho detesta-o. Coisa menor. O jogo é a sua paixão. A família o seu pesadelo sonhado. Não suporta o trabalhinho de gabinete, pequenino, vazio e de ordenadinho fixo. Não tolera o chefe de falas mansas e conselhos melífluos, não atina com os colegas sabujos de pequenas promoções e menores vidas Na estação, Santa Apolónia onde raramente põe os pés e tem o gabinete, vê os comboios chegarem e partirem. Anseia por partir. Mas não pode. Não pode, porque o jogo o chama diariamente. Não a família, essa, que se lixe. Tem espírito superior às coisas comezinhas. Ele é um senhor. Ainda não perceberam?Um Senhor!

Tropeça na biqueira dos botins, ao subir a calçada, pragueja contra o vento que sopra do Tejo, chispa num olhar de raiva ao seu redor. Não tolera os vizinhos labregos, rudes e operários. Chega ao degrau da porta. Empurra-a. Entra e grita:

-Margarida!

-Sim, Caetano. Responde a voz contida. Enxota suavemente os pequenos. Põe os dedos nos lábios em onomatopeia: Chiu! Psss! Ajeita o chignon, alisa a saia e sorri.

-Aqui estou, meu querido!

-Estou febril. Vou-me deitar. Leve-me uma canja à cama!

Assim. Sem mais. Duro, frio, egoísta. Cai na alcova. Sente-se exangue. Violado, roubado. A sua amante bebe-lhe o ser. A vida cobra-lhe a alma. A família tolhe-o .Somente a raiva surda do ontem perdido, e do amanhã hipotecado na lâmina cortante da jogada, o faz respirar. Abandona-se à tepidez dos lençóis ainda bordados. O silêncio da casa penetra na sua mente. Um quase vazio. Sente o ser rodopiar em espiral. Depois o outro eu, reflecte o anseio procurado: a tranquilidade, a compreensão, a aceitação. A paz de si. A luta, a raiva, o desdém, o desamor descansam por ora. Por breves momentos Caetano deixa a agitação que o persegue, desventrando-lhe a mente e aviltando-o nos degraus de vida que teima em tropeçar.

-Caetano, meu querido… tem aqui a canjinha…

-Obrigado, Margarida. Desculpe-me. …Os pequenos?

-Estão no quarto…quer vê-los?

-Sim… Não, mais tarde talvez…Agora deixe-me

O quadro repete-se dia após dia, como se o artista apenas soubesse usar aquele traço pesado e triste. A paleta de cores morre no esbater da noite com laivos vermelhos de raiva. As figuras abrem-se mudas ao embuste da vida. Uma tela terrivelmente espatulada.
A noite é já bem escura quando Margarida se deita a seu lado, dorida de um dia de miséria escondida, ele agita-se no leito. Acorda da sua letargia e sem palavras serve-se. Penetra-a sem delongas, sem gestos, apenas o acto. À saciedade. Um homem não pede, um homem usa. Ela é sua para ele. Só e apenas. Deixa-se cair e adormece
São onze horas. Levanta-se. O sol já vai alto e a casa já ganhou a vida de um novo dia. Ouvem-se as vozes das crianças…ao longe. Levanta-se. Tem que ir para o gabinete para a vida pequenina e arrumadinha.
Sai com um até logo enxuto. A cidade já revolteia. O cheiro do rio penetra-lhe nas narinas, amassa-lhe os pulmões e irrita-lhe o cérebro. Desce a calçada. Santa Apolónia é já ali em baixo. Eis a estação. Franqueia a porta. Alguém o cumprimenta. Sem olhar, retribui. Sobe ao seu gabinete. Entra e senta-se, suspirando de tédio. O relógio compassa as horas indolentes no silêncio fechado. Batem-lhe à porta. É o paquete que lhe diz para ir ao Director. Mais tarde quando abandona a sala do superior, tem a cólera estampada. O rosto é vermelho, os olhos quase saltam nas órbitas de furibundos. O esgar da boca é de ódio tudo condiz na expressão .Até o colarinho engomado da camisa está solto. A fúria está alojada. Fora despedido!

-Imbecis, quejandos!

Não pelo despedimento, mas afrontarem-no, a ele! E logo hoje que até quase cumprira o horário. Incumprimento?! Mas o que pensavam eles? Já na rua cospe a raiva em frases murmuradas de ódio contra todos e tudo .Os dedos esguios descrevem hiatos de força, as pernas baloiçam numa dança de pontapés perdidos… Louco de tudo, atravessa a rua, volta à esquerda, sobe. Não respira, range os dentes. Lá está. Entra. Suspira. Sorri. Sente a teia envolvente e macia. O afago de calmaria que o penetra. A sua amante espera-o sensual e faminta na dança do leilão e ele sabe que será o seu eterno carteio.

Sente-se em casa, em paz, a entrada está feita!