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26 dezembro, 2008

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ALVA

Alva senta-se no rodado da saia. O frio que lhe atiça as coxas recorda-lhe as palavras gélidas ainda vivas no papel da carta que acabou de reler. Tanto tempo sem saber dele e agora, assim de repente, tudo e nada.

Diz quem escreveu que falecera.

Talvez.

Alva abana a cabeça, incrédula.

Outros tempos, outras terras. Outras cores. Fora há muitos anos. Tantos que decidamente quase se esquecera do contorno do seu rosto. Era tempo de amor. Quando o calor aquecia o corpo, mais os sentidos.

Alva dos Santos.

Que tempos aqueles. Quase olvidara como fora. O tempo tem sempre destas coisas, lava. Lavara-lhe os desejos, apagara-lhe as memórias. Agora recorda. Sente uma tremedeira que há já muito esquecera. A carta. Maldição. Um desvendar de coisas que julgara sepultadas. Não sente saudades. O passado deve ficar por lá. Já fora joeirado. Depois dançado e iluminado de fogo.

Fora num tempo de verão. Quando as amoras refulgiam de pesadas por entre as silvas. Fora quando o pai fizera aquela promessa ao Santo Patrono a propósito das sezões da Lila. Lila era a irmã do meio. Nascera assim fraquinha, e, depois sempre que o verão apertava, a coitada rebolava os olhos, empalidecia, e zás. Caía. Assim pró chão. Desabada. O Chico das Mós, homem de boas promessas e trabalho, empenhou-se a fundo, arrastando toda a família. Alva era moçoila feita por essa altura. Moçoila bonita, muito mesmo. Alva como o nome. Toda ela vibrava. Tinha namoro. Tinha. Até já lá ía a casa, isto é ao pátio, que o pai não era de modernices.

Mas o sofisma da vida, fez que o destino lhe trocasse as rédeas. Jorge Feitor. Ai, ainda lhe rói o nome. Bem-apessoado, bem-falante, bem jeitoso. Tudo bem e bom. Lá foi com o pai até à igreja, à sacristia. Trataram da promessa. Os olhares enviesados que entretanto se iam dando. Os calores. Os sobressaltos. O pai não viu, não reparou. Também fora discreta. Só pelo rabo do olho se encontrarem naquele espaço de cheiro a sabão e cera. Tão lavado e engomado que sabia a pecado só olhar.

Mas naquela noite, deitada na alcova, lado a lado com a Lila que gemia, Santo Deus como aquela alma gemia. Enquanto Lila gemia, e estrebuchava de mansinho, ela rebolava a carne no ardor do cheiro que lhe ficara. Cera e sabão. Decidiu no dia seguinte visitar a igreja. Fazia-o ao domingo com a família. Nunca se apercebera como era bonito! Também de longe e no meio daquela sotaina toda. Pouco tinha para ver. Ah, amanhã ía lá. Tinha que ir.

Levantou-se com os pardais mais o desejo.

Na cozinha encontrou a mãe. Aquela criatura nunca devia dormir. Era a última a deitar-se, ouvia-a de noite, e de manhã já estava de pé. A mãe. Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. Nunca se lembra de a ter visto gargalhar. Os olhos enormes, fundos, as olheiras. Um rosto liso e inexpressivo, mas meigo. A bondade vestia-lhe a pele. Era assim a mãe. Serena ou alheada? Nunca percebeu bem.

.-Ó Alva já a pé? O que te aconteceu?

-Nada, mãe. Não tinha sono. Fez muito calor de noite.

-Estamos no tempo dele., minha filha.

-Ó mãe, como o pai me pediu para tratar do assunto do patrono, levantei-me cedo para ter tudo em ordem e depois ira até à igreja.

-Ah, mas o pai e tu já não foram lá?

-Já mãe, mas sabe como é, há sempre coisas pra fazer…

E fora assim. Visita hoje, encontro amanhã, recado depois. Batina rolada, saia caída e… o mundo mais as rezas, promessas, cera e sabão, tudo desfeito na erva do campo, na alcova por detrás da sacristia. No quarto caiado de branco com o crucifixo na parede. A mudança vestiu-a de mulher. Sabia o quer queria. Não pensava em desistir. Nem Jorge. Como era bom amarem-se. Como se sentia plena. Mesmo quando o cheiro a sabão e cera se misturavam e o olhar do crucifixo a ponteava. Não havia sentimento de culpa. Ela amava um homem. Só isso. Podia durar, queria que durasse. Mas também, não podia.

Era aquele tempo.

Mas, as histórias têm sempre um mas, a Lila, a irmã, a menina das sezões, a doentinha, a tadinha. Não era parvinha, não era, não. Fazia-se. Convinha-lhe. Ameaçou-a. Disse que sabia de tudo. Que a tinha visto. Que a seguira. Que ia dizer ao pai. Que o homem era o padre. Uma vergonha. Uma desgraça.

Alva suspirou.

O último reencontro não foi fácil. Foi de despedida. Não pediu nada, porque nada havia para pedir. Não chorou, porque tinha rido. Não o recriminou. Não tinha que o fazer. Porém, não sentia vergonha, nem asco, nem nada. Apenas estava saciada. Toda. As carnes vibravam, alvas e deleitadas. O resto estava sereno. Tudo.

O seu episódio de vida nunca fora um paralogismo, mas antes o mais puro realismo ideal.

O frio da pedra acorda-a para as palavras.

Levanta-se, entre dentes murmura, enquanto amarfanha a carta. Ser é ser percebidofoi sempre o que eu quis. Foi tudo o que eu quis.


Act 1 La Traviata: Libiamo, nelieti calici (Brindisi - Inessa Galante


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15 junho, 2008

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.Urze e Giestas

(...) VII

Margarida e a bolsa atiram-se para cima da cama. Que dia! Para a frente e para trás. Aquele corre- corre que a deixa exaurida. Bolas, ainda não comeu nada hoje. É isso tem fome. Mas ir para a cozinha? Não lhe apetece. O frigorífico deve estar vazio. É habitual. Mentalmente pensa em ir às compras. Tem mesmo que ir, não é este fim-de-semana que a filha vem? É isso. A Inês já é quase adulta não a preocupa. Ela mesmo irá às compras, aliás tem jeito para isso. Tem tanto que fazer, tem uma vida tão ocupada. Gosta muito das filhas, no entanto reconhece que não tem tempo nem predisposição. Não é má mãe, não é nada disso, é apenas diferente. Gosta de estar com elas, de as levar aqui e ali, de conversar, mas daquele papel predefinido de mater familias, não lhe assenta nadinha, e detesta-o absolutamente. Aliás, a sua índole é por natureza belígera com as normas. Depois, ama por demais as suas outras filhas, as suas telas, que vai parindo no rebentar das cores sob o traço do desejo conquistado em arte.

Vai telefonar e mandar vir uma pizza. Bolas, sempre pizza ou comida chinesa. Já está a ficar farta. A cozinha é sítio que não a inspira aliás antes a irrita. Tempo perdido. Comida não é coisa que a seduza. Come para estar de pé. O alimento do seu corpo acha-se espírito e esse nutre-se de coisas bem mais importantes. Mas hoje tem fome, também só bebeu dois galões e meia torrada todo o dia. E ontem? Não se lembra, porém não deveria ter sido muito mais. E se tomasse um bom duche, se arranjasse, fosse buscar a filha e rumasse a casa dos pais? Era uma hipótese. Inês ficaria deliciada e ela de certa maneira, também. Mas só o esforço de ter que cumprir as regras, já lhe apertava ainda mais o estômago já de si vazio. Da última vez que lá fora saíra azeda com o pai. Era tão monolítico. Era suposto pai e filha darem-se bem mas nunca o conseguira. Não sabia a quem saía assim tão contestatária. Simplesmente havia coisas que a faziam passar-se. Depois, nunca conseguira apreciar nem ter aquele tipo de vida arrumadinha dos pais , dos irmãos mais velhos. Aquilo fazia-lhe uma certa brotoeja. Gostava de viver de acordo com o momento. Ria quando lhe apetecia, gritava ou resmungava quando lhe dava na gana. Comia se lhe apetecia. Dormia de dia ou trabalhava de noite se lhe dava na gana. Não se enquadrava nos padrões. Amava quando sentia vontade e descansava quando o corpo lhe pedia também. António fora o seu primeiro amor. Tão primeiro, que Inês nascera tinha ela dezassete anos. Uma tragédia na família! Lá se tinham casado porque o pai quase a excomungara. O certo é, que quando se casou já não lhe apetecia viver, com o então marido. Já estava farta. Aguentou durante cinco anos. Depois, um dia pegou na mala e desapareceu. Deixou a filha com o pai. Separaram-se, divorciaram-se. Uma paz. Inês ficou com o pai, a ex-sogra criou-a, e diga-se, fez um bom trabalho. Tinha vinte e cinco anos quando acabou o curso e foi estagiar para Itália.

Claro que se apaixonou. Foi assim un coup de foudre. Assim um sentir inexplicável que a fazia tremer e lhe confundia os dias. A ânsia de estar com Gianni era tão sublime que só passados dois meses é que começou a conhecer a rua de onde vivia e um pouco da cidade que a albergava. Aquele devorar de tempo e carnes que a deixava fisicamente exaurida mas plena de tudo, continuou infindável. O calor daquele labareda despida de som era tão forte, que lhe consumiu o ser sem disso se apercebesse. Foi inexplicável Explicar o sublime é criar arte. Não encontrava palavras para trasladar os seus sentidos. As mãos, por então perderam-se um pouco vazias de traços, a vista deixou de albergar o desejo de criação, porém procriou no ventre incandescência desse sentir. E Pia nasceu. Amou-a de tal forma que até doeu. E pensou em Inês e sentiu-se apócrifa. Logo, porém, justificou que Pia era filha do amor desejado e Inês acontecera. Era diferente. Depois Pia era uns dez réis de gente que a envolvia em sedutores sorrisos. Era linda a sua pequenina. Gianni e Margarida viveram, amaram-se devoraram-se e esgotaram-se. Tanto que se detestaram. Em permeio Pia crescia. Decidiram em separar-se simplesmente. Gianni foi irredutível,” La bambina resta Qui.”. E assim fora. Duas vezes por ano, vinha Pia a Portugal, e ela uma vez a Itália. Pia ía nos doze e Inês nos dezassete. Davam-se bem as duas. Havia em Inês um sentido maternal para com a irmã que a deixava perplexa. Eram muito diferentes. Inês era sóbria, muito arguta, inteligente mesmo, trabalhadora, ordenada e humana. Fisicamente era esguia, talvez em excesso, loira, pele clara e possuía uns olhos muito expressivos. Pia era uma sedutora nata. Quase de certeza que seria uma beleza, a malandra sabia-o, e já jogava com isso. Era uma jovenzinha muito envolvente.

Duas maternidades, um casamento e uma paixão tinham-lhe dado uma força criadora inesgotável. Bebia, ainda, os sentires passados que tornava presentes. Depois o mundo em redor continuava vivo, em cada virar de esquina, e ela sorvia-o ansiosamente. Um olhar, um gesto, um esgar, um grito, uma vida, um quebranto tornavam-se retratos vivos e pungentes sob os pincéis de Margarida. Era bem recebida a sua arte. Tinha já nome. Vivia dela.

Hoje mantinha relações esporádicas de acordo com as suas necessidades ou simples vontade. Não se envolvia para além do momento. Gostava da sua solidão, dava-lhe a independência de pensamentos e movimentos. Preferia assim a vida. A raiz do seu ser era profunda, aprumada bebia o húmus da terra negra e húmida. Os dias nem sempre eram doces ou dourados, havia-os muitos negros, cinzentos, ou simplesmente doridos. Nada era como devia ser. O hoje é um crepúsculo varrido de intenções, o amanhã será a neblina do ontem.

Levanta-se, descalça vai até ao espelho que veste a parede em frente. Requebra o corpo, lança um olhar enviesado avaliando o que vê. Não está nada mal, pelo contrário, está até muito bem. Um toque nas sobrancelhas, o cabelo lavado, vestir-se sobriamente, e ficará irrepreensível. Gira sobre si. Vai até ao armário. Escolhe umas calças, não desta vez não serão jeans, apetece-lhe mudar, uma camisa. Depois as sandálias. Dirige-se para a casa de banho. Despe-se e entra no poliban. A água quente cai-lhe nos ombros e resvala pelo corpo. Solta-se. Ensaboa-se lenta e meticulosamente num acto coquette ainda não esquecido. Depois sai e enrola-se no toalhão felpudo e vermelho. A cor transmite-lhe energia. Hidrata corpo e o rosto, só então se veste. Cada movimento é calmo e preciso.

Maquilha-se ligeiramente. Pega na bolsa. Mentalmente recorda-se que tem que ir ao multibanco próximo. Sai, desce o elevador e entra no carro que está estacionado na garagem. Arranca. Pouco depois entra no cabeleireiro.

Quando sai, o dia arruma-se na linha do horizonte. Sempre vai buscar Inês, de seguida para casa dos pais. Vai ser um fim-de-semana diferente. Costumeiro, diz-se, mas para ela, invulgar.

-Olá Mãe! Chegaste a horas!

Entra no carro e dá-lhe um beijo.

-Uauu! Vais a algum sítio? Tens alguma reunião?

-Olá Inês? Tudo bem? Vamos para os avós este fim-de-semana.

-Boa! Tenho tantas saudinhas do Vô e da Vó. Olha, ontem tive na Net a conversar com a Pia. Ela e o Gianni vêm cá, porquê não sei. Mas na próxima semana tens cá tua filha. Já sabias?

-Não. Minha filha e tua irmã… E tu ,como estás, a escola como vai? E o teu pai e a Ivone e o teu irmão?

-Tudo bem. Tenho exames daqui a duas semanas, bem tenho que lhe dar. O pai está bem e a Ivone também, já sabes. O Gonçalo é que também anda às voltas com os testes. Final do ano. Já sabes como é, ou não sabes?

-Mais ou menos. Parece-me uma eternidade, o tempo passado.

-Pois. É assim. Olha, telefonaste à Vó Luísa a dizer que íamos? É que da última vez o Vô Alberto estava danado, já sabes como é. Telefonaste?

-Claro Inês.

-Tá bem, ainda bem. Mas não disseste ainda onde foste toda assim, “toda triques à beirinha”…

-Não fui a lado nenhum, aliás vou. Vou a casa dos teus avós, meus pais por sinal.

-Tá, mãe não te chateies. Não é habito vestires-te assim, por isso perguntei. Tudo bem.

- A tua avó pareceu-me em baixo. Oxalá não esteja doente.

- Vais ver que não. É da idade. A avó Susana também tem dias assim e no entanto continua rija.

- Espero bem que sim. Mudando de assunto como vão as aulas de música? Não te tenho ouvido dizer nada.

-Vão indo. Já te disse que nunca vou ver uma virtuosa. Gosto de música mas não é a minha vida e já o sabes. Isso é para a Pia.

- Está bem Inês. Vocês são muito diferentes. Lá isso são.

-Pudera os pais também são bem diferentes, não é por nada, mas eu prefiro mesmo o meu.

-É natural, não é?

-Será, mãe?

-Deve ser. O teu pai é um ser humano excepcional. Reconheço-o. Não funcionou para mim porque é metódico, analítico e quase despido de frémito. Excessivamente lógico e estruturado. Sabes, Inês, vivo na dimensão do instinto, sou repentista, ajo sob paixão. Penso com o órgão, faço asneira, caio, levanto-me. Mas trinco cada momento quase até ao caroço, por vezes mesmo o caroço, que me sai bichado. Coisas da vida. Tu tiveste a sorte de ter um pai excelente e uma mãe avoada. Um dia vais perceber que afinal és mais rica que os outros… mas só um dia.

-Hoje, tás esquisita. Apaixonaste-te outra vez? Hum… deve ser isso. Palpita-me.

-Ah, ah, ah! Nada disso, minha querida. Nada disso. Vejo que ainda não é tempo. Mais tarde talvez. Olha, estamos quase a chegar.

O jardim do Príncipe Real senta-se ali mesmo no girar do redondo. As velhas árvores adejam as folhas no soprar da brisa do fim de tarde. Nos bancos sentam-se velhos, cujo olhar se perde por entre quadrados de tempo vítreo, tal como as pupilas que o recolhem. Nas mãos trémulas, descarnadas e venosas escorre-se-lhes o resto de vida. Vêm ali consolar o olhar já que o corpo teima em pesar. Sentam-se, olham, conversam, murmuram ou sibilam. Pegam na bengala, ou trôpegos mais desafiantes, voltam a recuar no caminho. São assim os dias. Crianças, não há. A cidade fecha-se cada vez mais na idade do tempo gasto, e despreza os dias de amanhã. A velha rua de janelas altas e varandas floridas surge ao olhar de ambas. Ora aqui está. Buzina e o portão abre-se. Entra.

-Olha olha, o teu tio Pedro está cá….

-Boa. Há tanto tempo que não o vejo

-Cheira-me a coisa, Inês. Vamos ver…

Luísa na escada sorri-lhes. Abre os braços como se o sentir lhe saísse do coração direitinho par a filha e neta e diz:

-Até que enfim, minhas queridas!

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