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21 novembro, 2007


Os Novos Imigrantes (II)


-Márcinho vem cá, meu bem.

Mulata quente, de formas redondas e firmes, sorriso de sol amarelo no rosto de trigo maduro, Josira balanceia a sua bundinha no compasso dos passos apressados. Há que levar Márcinho à escolinha e depois ir numa corridinha tomar o cafezinho da manhã. Hoje tem muitos pés e mãos para fazer. Lesta veste o rapazinho. Três anos de sorrisos num rostinho redondo de olhos negros cheios de estrelas. Já pronto puxa-o a si e aperta-o. Sente aquela quentura suave de criança, o morno do corpito ainda lhe escorre nos dedos. Suspira. Márcinho, o seu homem, a sua vida.

Josira fecha a porta do pequeno apartamento. Chama o elevador. As mãos estão cheias, de bibe, casaco, mochilinha. Tudo do seu menino. São horas de o entregar no jardim-escola. Tem ainda que andar um bocadinho, a manhã acordou fria de nevoeiro, o ar gela as narinas, enruga os dedos e corta o bafo quente. Veste o anoraque ao pequeno, põe-lhe o capuz na cabeça, aperta o seu casaco, sente um tremor pelo corpo nem as formas cheias a aquecem, tem que comprar um casacão, mas Márcinho precisa de botas e calças. Terá que esperar. Talvez com um pouco mais de gorjeta, o Natal vem aí, e as clientes são mais mãos largas. Talvez, mas o tempo está preto. Ela que o diga. Pagar a apartamento, a escolinha do seu menino, vestir calçar e comer. Uma doidura. Sempre a fazer conta, sempre. Tem dias que dá vontade mesmo é de chorar, sente-se sozinha quando o seu menino não está. Ter sempre que lutar pelo amanhã, que é cinzento e frio. Tem memória ainda quente do seu Brasil nordestino, da mornura que enche o ar e alaga a pessoa. Aqui é diferente. O português é mais formal, mais frio. É boa pessoa, mas não ajeita o calor que tem, nas gentes em redor, é como tempo. Ora quente de brasio, ora de chuvadas ora gelado de cacimbo e cinzentão, sempre cortado em si, não estende a mão no calor ou no frio dos dias, porém tem coração mole quando se lhe toca a alma. Gente diferente da sua gente. Mas gente do futuro do seu Márcinho.

Está cá já vai para cinco anos, ainda lembra dos primeiros tempos, muito duros, muito magoados, muito cheios de engano. Não conseguira trabalho como sonhara, tivera que deitar mão ao que aparecera. Márcio, o seu marido não arranjara nada. Ele tinha sempre um jeitinho calado, descansado quase molengão. Gostava mesmo era dormir, pegar uma cerveja mais o violão e sentar no cadeirão cantando as modinhas. Um dia partira sem nada dizer e Josira esperara, esperara, em vão, ele não dera mais notícia. Fora cruel, mas Márcinho vinha a caminho tivera que ser forte. Seu menino já era gente, ía dar-lhe futuro, mais do que um violão e feijão, como outros meninos, que ela sabia. Josira chega à escolinha, troca os bons dias com a educadora e entrega-lhe o pequeno.

-Dá um beijão em Mãmãe, dá, meu bem.

-Sim, Mamãe.

O pequeno ergue-se na ponta dos pés beija-a e corre para junto dos seus amiguinhos. O bibe azul balança no corpito à medida dos passitos em corrida. Voa para a sua salinha e entra feliz, com aquele sorriso gaiato que lhe pinta os olhos e arrenha as bochechas. Cá fora, Josira enfrenta o frio que desce do alto para o corpo. Sorri, vai enfrentar mais um dia, rápida dirige-se para o gabinete de estética. É ali o seu trabalho, depois, nas horas mortas ainda vai a casa das senhoras fazer umas mãos, pés ou simplesmente uma maquilhagem. Ela sabe da sua arte, gosta do que faz. Tem dois trabalhos mas dá para sobreviver, e depois sempre foi muito poupada. O seu sonho é abrir uma academia, mas até lá… se acaso algum dia acontecer, tem que labutar o dia-a-dia. Não é fácil mas é melhor do que no seu nordeste onde o desemprego rondava como bicho na toca, a fome era quase um estado e o futuro, o que era isso? Emigrar foi a solução. Deixou a família para trás, e eles são tantos. A sua gente tem filhos como as sementes do maracujá. Muitos e gostosos. O pior mesmo é quando as sementes começam a brotar, aí, não dá ,para o maracujá ficar quietinho na árvore, não dá, não. E depois o fruto cai no chão, fica bichado de podre. É assim a vida, lá na sua terra. Gente que nasce e cai sem nunca se levantar, doente e pobre. O seu Brasil, oh como a saudade rói ,abana a cabeça como que a despedir os pensamentos.

-Bom dia, Dona Isabel, tudo bem?

-Bom dia, Josira, está frio, hem?

-Oi meninas, tudo numa boa?

-Oi, Josira!

Veste a bata, prende os cabelos, pega no cestinho de verga com os vernizes coloridos e respectiva parafernália, no banquinho e na tina de hidromassagem. A primeira senhora está à sua espera.

-Bom dia, Dona Maria Graça. O que vamos fazer hoje, pé ou mão?

-Bom dia Josira, os dois.

Coloca a toalha no cimo da perna quase junto à coxa, dobra com suavidade a perna de D. Maria da Graça, o pé assenta na toalha. Uma olhadela e vê o estado do pé e unhas, o que precisa de fazer. Não estão lá muito cuidados. No Brasil, dona que é dona cuida mais de si. A mulher portuguesa só começa agora, brasileira gosta mesmo de si, de estar gostosinha, de ser mais mulher e menos mãe. O instinto de fêmea prevalece, maternal é consequência. Um pé está pronto, rosado, fino, o outro segue-se-lhe. No final, a cor invade as unhas ,tornando-os apelativos. Não importa ficarem escondidos, haverá tempo de mostrarem assim de nus. Depois é tempo de mãos, Dona Graça tem dedos esguios e bem articulados, e o seu trabalho fica mais bonito, ainda. Vezes há, em que as donas têm mão áspera, de lida, de descuido ou de falta de carinho. Tem visto tanta mão e pé que quase podia contar vidas, mas só pode pensar para ela. Tem sempre que ser simpática, humilde, é o seu ganha-pão que está em jogo e Márcinho vale por todo o pé e mão gretado, inchado ou áspero. Se mamãe e papai tivessem labutado como ela, não teria precisado de emigrar. Mas mamãe e papai não sabiam ler, viviam na casinha que vôvô construíra, fazia tanto, lá no mangues junto à foz do Gurupi, no Maranhão. Eram cinco, ela e mais quatro, tiveram que fazer pela vida, se virar. Estudara o ginásio com bolsa, claro está. Depois trabalhara na Academia, e assim custeara o seu cursinho de esteticista. Voltar ao sítio, só no Natal, já não se acostumava aquela pobreza. Mamãe sem dentes toda descaída, e papai feito pau de goiabão de torcido e enrugado. Sobrava apenas a ternura arrastada das suas gentes, o cheiro de terra húmida quando chovia, o chinelo no pé, o pentear na soleira da casa, a conversa morna de mamãe, o cheirinho do bacuri, do jenipapo, do tamarindo e do jaca, frutas que ainda a fazem salivar de saudade. Lembra-se, quando se sentavam na mesa comprida de pau-d’óleo depois de uma juçara bem molhadinha. Sem se aperceber trinca os lábios cheios, a tez respira o mate, os olhos são castanhos ouro, vestidos de cílios longos que lhe sombreiam o olhar. É bonita, Josira. Mulata vistosa, redonda, gostosa. Ainda tem anos verdes pela frente, sabe-o. Chorou assim de poucochinho o seu Márcio, mas também encolheu logo o coração, e só abriu de mansinho ao seu pequenino. A manhã correu depressa, Josira arruma as coisas, conta as gorjetas e sorri para si. Mais uns dinheirinhos e já pode comprar as botas que viu para o seu menino. Tem duas horinhas e vai correndo para casa de duas clientes. Vai lá fazer-lhe as mãos. Pagam bem, precisa de tudo. O Natal vem aí e quer comprar uma coisa bonita para o filhote e se puder, para ela, também. Tem sido assim, sempre, desde que estão os dois. Márcinho fica tão feliz, as covinhas das suas bochechas riem sempre com a boquinha. É um regalo vê-lo assim. Só ela sabe a tremura quente que sente quando o vê rindo. As lágrimas aquecem-lhe os olhos e mergulham no coração aberto de mãe. Sabe que o amanhã é do seu menino e dela, mesmo com o amanhecer frio, gelado e cinzentão dos dias, mesmo com a luta do seu dia-a-dia, mesmo com a sua solidão de mulher, sabe que um dia vai vencer.

O entardecer vai vestindo o seu capote, no portão do jardim-escola, o sorriso mais lindo do mundo, abre-lhe os bracitos.

-Oi, mamãe querida!



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