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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

17 outubro, 2017

. .Estória do meu país.
A s personagens:
  António vive na vila, é um cidadão comum, tão comum que ao domingo se levanta mais tarde, toma o pequeno almoço no cafezinho da vila, depois vai à missa ouvir a palavra do Senhor regressa a casa almoça um repasto melh
orado, e, depois de uma breve soneca vai dar um passeiozinho com a família, ou então, visita a família espalhada pelas redondezas. Regressa ao anoitecer, vê as noticias, boceja e beatífico vai para a cama. A semana seguinte é de trabalho. Há que repousar.
 Rita é citadina. Não de uma grande cidade, daquela que nós chamamos de província já com boas condições que permitem uma boa qualidade de vida e sobretudo tranquilidade de espirito. Rita também se levanta mais tarde. A semana foi pesada. O inicio do ano escolar é sempre complicado. Há que ajustar mil e uma coisas. A roda dentada dos dias tem que ser oleada. Ser mãe e pai é algo acontecido, não deliberado, mas beatificamente aceite. É a vida.
Hoje vai com os garotos à aldeia. Prometeu aos pais lá ir almoçar.  Fica só a trinta quilómetros entre ir e vir. Tem que se despachar. A preguiça toma o tempo.
Miguel é mecânico de carros. Vive naquele oásis entre a aldeia e a vila. Nas horas vagas é bombeiro. Este fim de semana deixou a mulher e os pequenos e foi apagar o fogo. Tem sido um verão sem parar. Graças a Deus que tem tido alguém a olhar por ele. Já viu coisas que um homem não deve ver, nem saber. Mas é a vida!
Maria é política, tem um lugar de destaque no governo. Levantou-se cedo, aliás foi acordada pelo ruído do telefone.  Arranjou-se e correu para o ministério. Entredentes maldisse a sua vida, ou antes, a ausência dela. O poder estava a começar a cansá-la. Não o poder, sejamos claros, as emergências que o poder exigia.  Uma vez mais os malditos fogos. Não podia fazer muito. Toda a pirâmide estava minada havia décadas. Sem dinheiro, pouco ou nada se podia fazer. Depois havia interesses, coisas que não se podiam mexer. A teia ia muito para além de qualquer reforma da floresta, da prevenção aos incêndios, de mudanças na proteção civil. Em resumo há lobbies em que é quase impossível mexer, e o dos bombeiros também era um. Dizer isto ao cidadão comum era fazer uma enorme clivagem política, de interesses e até de sentimentos. Só podia dar a cara, gerir o pouco que havia para gerir. Evitar o grande caos, se possível. A política não vê, não ouve, não sente. A política apenas se esculpe. E, assim pensando, abriu a porta do gabinete.
Nuno é jornalista. Está na redação desde bem cedo. O instinto leva-o a estar ativo. Pressente, que o dia vai ser longo. Há que dar a noticia, há que não deixar escapar o todo. Estar ali e aqui, estar no acontecimento, estar em direto, estar sempre no local. O público vive das palavras, das imagens, do despoletar dos sentimentos, da dor do outro. Há que mostrar, quase infernizar as consciências. Não criticar somente cobrir o acontecimento. O papel principal de um jornalista em direto.
Os acontecimentos.
Não se quer saber como, mas sabe-se porquê do dos acontecimentos. Alguém ou muitos alguéns resolveram fazer queimadas ou por ignorância, ou por maldade, ou por ganância, ou por tudo aquilo que o povo sabe e não quer pensar.
Da cintura para cima do país labaredas vermelhas, laranjas, quentes, brutais, queimaram, assaram, devastaram, fumaram, enfim criaram a dor e o vazio. As gentes gritaram de dor física, de dor mental, de dor vinda das entranhas apunhaladas na labuta das vidas. Retorcidas nos esgares, nos gestos de mãos erguidas e lágrimas pingadas.; de choro acre e sangrento; de gritos e ais estiolados num ar negro, sufocante de ignescências. As chamas riram-se das gentes boas numa dança de macabra de ambição, podridão e morte. A morte rondou, desceu e roubou gente, a nossa gente. Ontem e hoje o meu país ardeu. Arderam os pinheiros, os eucaliptos, os carvalhos, os castanheiros, as oliveiras e tantas, tantas outras. Arderam as casas, os casebres, as capoeiras, canis e mais e mais. Ardeu a gente por dentro e por fora. Ardeu a alma de um povo. Foi o último domingo de António. Morreu queimado na sua casa, a que construirá com as suas mãos, envolto nas labaredas vermelhas da cor do seu sangue. Morreu na asfixia enrolado em si de mãos hirtas e dedos convulsos.
Rita ficou presa no caminho entre mantas negras que a asfixiaram e aos filhos. Jazem na cama branca entre tubos e emplastros de gordura. Da simplicidade de um almoço e calor parental para frigidez translucida do hospital. Os pais da Rita choram e abanam a s cabeças na sua imensa alma dorida. Miguel, o bombeiro, olha-nos de olhar vazio. Aqueles olhos viram mais do que é permitido à gente deste mundo. Miguel não fala, respira o ar amarelo do dia, apenas porque vive. Vive, perdido no horror do dia de ontem, vive porque teve a sorte de não ser apanhado. Tanta desordem em nome do comando. É o que pensa, é o que sente. Maria saiu do gabinete e entrou noutro maior onde se pressupôs seguir as operações. A politica não sente, a politica não é gente, é intenção. Não serve à gente, não resolve as crises, não mitiga a dor, nem salvaguarda o quotidiano. Perde-se nas palavras, ditas de promessas.
Nuno descansa. O dia foi grande. Cumpriu. Uma desgraça. Passou o caos, passou as palavras dos dirigentes. Palavras contritas, contidas e verdes de esperança. O único verde que remanesceu, porém, já uivado de negro, do ar em que foram proferidas.
Esta foi a estória do meu país. Durante ias vai-se ouvir todas as hipóteses viáveis, corretas e honestas para o futuro. Mas será que teremos mesmo futuro? Será que no meu país o laxismo, facilitismo, o adiar são as ferramentas que o dirigem?
M aria Teresa Soares

15 outubro, 2017

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O Fio dos Dias






Tomás, homem dos dias, balança-se na cadeira do café do bairro. É ali que mata o tempo. É ali que joga ás cartas com os parceiros dos anos. Tomás não é velho, mas é idoso.
Hoje senta-se mais curvado do que nos outros dias. Não que os ossos tenham chiado mais ou que a cadeira esteja mal assente. Hoje é um dia, mais um do que ontem, é certo, e, menos outro do que o de amanhã, em que está, sem estar ,estando em si, todavia com vontade de sair.É daqueles dias em que está irritado, não é bem isso, é algo que vem das entranhas até à cabeça e da cabeça ao corpo. Não sabe definir. Nunca soube. Tem dias assim. Poucos, é verdade, mas tem. E, hoje é um deles. Há impaciência até nos pés titubeantes que descansam no chão de mosaico. Está inquieto desde que se levantou bem cedo. Os gestos denunciam-no. Quando pegou na caneca de leite, entornou-a, quando pôs a manteiga no papo seco, esta saiu dos bordos do pão. A sua Agostinha olhou-o, com aquele olhar dos anos, meneando a cabeça. Calou-se. Só olhou. Nesta altura da vida as palavras não existem porque se gastaram, somente o olhar fala. Saiu para a rua resmungando entredentes contra tudo. Aliviou-se. Mas não descansou.
Caminhou lento até ao café. Vazio. Preguiçosos, os amigos. O Júlio, o dono, olhou-o por entre as pálpebras semicerradas deu-lhe os bons dias. Mais nada. Adivinhou trovoada. Conhecia-o. Tomás sentou-se na cadeira que hoje não estava direita tal como o seu espirito e pegou no jornal que por ali descansava. Folheou-o mais por hábito do que por curiosidade. As noticias eram iguais todos os dias. A prosa repetia-se mo vai e vem dos verbos e adjetivos. Os substantivos eram comuns. Tudo era rotina. Igual. Como os dias.
Tomás pigarreou não para aliviar a garganta, mas antes o espirito. Para se sentir vivo. E os amigos que não chegavam. Queria implicar. Tinha vontade disso. Queria ser ouvido. A idade dera-lhe este atributo. Ter a sua opinião, muita opinião. Passara a vida a cumprir. As regras. As horas, Os dias. O tempo. Tudo organizado no fio da ordem. Agora não tinha fio, não tinha dias, nem horas, nem tempo. Eram dias vazios, quase vazios. Eram cheios pelas palavras do café, pelo silêncio de Agostinha, pelo sono do sofá e o matraquear da televisão. A rotina dos velhos.
Precisava de falar, de se fazer ouvir e ser ouvido. Precisava de que alguém o contradissesse para se sentir vivo. A sua inquietação era afina,l sentir. Sentir. O tempo também lhe estava a levar o sentir. Aquela necessidade de vida, que via fugir. A premissa de pensar, falar, rir e chorar que o tempo lhe estava a roubar. Tomás sabia-o lá bem no fundo, por isso estava irritadiço. Queria rebentar, mas não tinha razão para isso. Ser velho, é isso mesmo querer viver,ainda e sempre.
Tomás suspirou. Estava a rezingar consigo. A sua raiava diluía-se à medida que o entendimento o percorria.
Olhou por entre o vidro da porta e viu João, o velho amigo, virar a esquina.

 O tempo estava a chegar. 
MT Soares