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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

06 março, 2016

Mulheres com rosto



III
Sob as árvores, na sombra macia da tarde, os jornaleiros saboreiam a sonolência da hora. Daqui a pouco regressam à sua labuta. Um passarito vagueia de uma árvore para outra. -Se ficasse quedo, pensa Júlio, um dos moços da jorna, talvez ele pregasse olho. Bem o queria. Uma noite em branco. Agora todas são assim. O velho, o avô, passa a noite numa urticária de sons. A avó resmunga toda a noite num ressonar de silvos depois lá pelas três da matina levanta-se, anda num desinço de um lado para outro. Nunca percebeu porque é que aquela Santa alma tem que começar a bulir de madrugada. A casa é vazia de quase tudo menos de eco. No quarto o avô resfolga o calor da enxerga madrugada fora enquanto ele, que dorme do outro lado da divisória, uma chita roçada de vermelho num azul desbotado de luz., não consegue pregar olho. Depois logo, logo tem que se levantar. Anda quebrado. A espiga de trigo entre os lábios fá-lo mexer os maxilares, que comprime em fúria. Porra de vida a sua! Já vai nos quinze anos e tratam-no como um fedelho, e no entanto trabalha que nem um homem. Senta-se de rompante. As pernas estão flectidas e entreabertas, na mão baloiça a espiga molhada, com a outra tira o boné e coça os cabelos empapados de suor. Olha em frente audaz, e entre dentes jura para si: “Um dia hei-de ser rico! “ Arremessa a haste de trigo com desdém. De um salto levanta o corpo ainda franzino de rapaz. Uma cuspidela nas mãos em concha, uma esfregadela, um ajeitar do boné surrado sobre os cabelos suados cuja cor é puro azeviche, um ajustar da corda que lhe sustém as calças de cotim remendadas em mapa de azuis baços, um arrepanhar a camisa suja que aberta, por falta de botões, deixa ver um peito moreno e ossudo. E ei-lo em pé mastigando o desafio da sua condição.

Um pontapé na pedra, que repousa ali à sua frente, fá-lo praguejar. A bota está rota. Esqueceu-se. O pó que se levantou fá-lo tossicar. Olha em redor. Não vê vivalma. Já regressaram. Lesto dirige-se para o campo do outro lado. Tem que atravessar a ribeira. Para chegar aos campos de trigo. Hoje andam na ceifa. Júlio estuga o passo. A jorna espera-o. Há que labutar para sobreviver. A pobreza é a única porta da sua casa. Conhece-a desde que se enxerga. As contas do rosário feitas do pão duro e vazio de gosto. Comer o caldo aguado que engana o estômago, vestir os trapos de anos ou as roupas já bem usadas que a caridade dos senhores oferece, crescer na rusticidade dos gestos e das palavras capeados pela feiura dos traços fechados. Ser sempre o filho do Zé da Horta ou da Lela do Carrapito. Não ser o Júlio Antunes, Rego ou algo assim. Ter o estigma da diferença desde que a mãe ficou prenha, ser sempre o rapaz e não o menino “Ah, mas um dia vou ser rico!”- Grunhe para si fechando os punhos –“ Vou ser rico!” A boca enche-se de saliva quente, e num gesto altaneiro cospe-a. Comprime os lábios trincando o desejo guloso e parte.
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Um comentário:

Mar Arável disse...

Caminhos insondáveis
num belo texto como sempre