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22 março, 2016

Mulheres Com Rosto



IX
1 de Novembro de 1755
Ainda se ouvem aqui e ali o choro dorido, há silêncio, pesado e triste. Hoje a terra tremeu. Tremeu muito. Gião ondulou, tremeu, rangeu, balanceou pelo lado norte, pelo sul pelo oriente e pelo poente. As entranhas retorceram-se convulsas mas por fim serenou. E o silêncio deitou-se. Pesado, quebrado onde em onde pelo lamurio da morte ou da desgraça. Ouviam-se os gritos vindos do outro lado do Sizandro. A velha capela tremeu no arrepio doente das suas paredes porém, o santo padroeiro protegeu-a. E lá ficou. As telhas voaram descalças para a terra. Uma ali, outra acolá, uma devagar, e mais outra e mais depressa, e o barulho aliou-se ao vento num rodopio caótico.
Encostada á janela, Maria Franca olha o cinzento da manhã, o vento que varre as árvores do pátio, faz com que as velhas telhas executem cambalhotas no ar antes de aterrarem estateladas no pátio ou desaparecerem pelos ares vorazes de eito.. Vento, pó e clamor calçam manhã. A raiva soprou das entranhas do mundo. E ainda era o primeiro dia de Novembro. De 1755- O dia de Todos os Santos.
Deita as mãos ao peito. Cruza-as numa aflição sentida. De soslaio vai deitando o olho para o berço onde a criança dorme. O seu filho mais novo. Tranquilo suga os lábios. Maria coloca as mãos em prece. Tem trinta e oito anos. Não esperava já por esta criança. Já descartara a maternidade, sobretudo com a sua idade. José, a criança dorme tranquilamente. Poisa as mãos rechonchudas fora do lençol alvo. Não acordou c quando a terra tremeu. Ela tremera de pavor. Ouvira os gritos dos criados, o alvoroço da terra. Recolhera-se no seu quarto agarrada ao berço. Não ousara gritar com medo. Esperara-a. Olha agora por entre a janela. Os murmúrios da casa são esparsos. O silêncio tomou a vida.
Volta a olhar o seu tesouro. Há preocupação nos olhos escuros. Tem que se mexer, saber da filha, do marido, dos criados, da casa, enfim do seu pequeno mundo.
Afasta-se da janela, perscruta a penumbra da casa, parece-lhe que os barulhos ressuscitam. Os sons rasgam a casa. Uma correria, uns passos, uma mão que veemente abre a porta e Ignes despenteada em camisa irrompe pelo quarto. Vem trémula, pálida. Os enormes olhos verdes transpiram assustados.
-Oh minha Mãe!
-Ignes acalme-se
- Está bem? José está bem?
-Estamos bem.
-Minha Mãe e o meu Pai?
-Com certeza que o seu Pai estará bem.
De repente o medo invade Maria F. Caetano está em Lisboa. Silenciosamente suplica que ele esteja bem. Quer convencer-se, tem que se convencer. Está sozinha em S. Gião.
Pega na mão da filha, puxando-a para o seu lado. Firme dirige-se para a porta. Há que ver se há feridos. Há que saber os estragos. Há que tomar decisões. Há que retomar a rotina. Não há tempo para se lamuriar quando os outros possivelmente precisam do seu apoio. Depois logo se verá.
-Não aconteceu nada a Caetano se Deus quiser - pensa para si.
Percorrem o corredor caladas. Maria agarra o ombro de Ignes que soluça de mansinho.
- Vá, vá lá minha querida acalme-se. Vá lá ter com a Joana e acabe de se vestir. Apanhe esse cabelo, depois venha ajudar-me. Deve haver muito que fazer. Chame a ama de José, para eu ficar descansada.
- Sim, minha Mãe.
Empurra-a para o seu quarto suave mas com firmeza. Sorri-lhe e acaricia-lhe o rosto pálido.
Logo de seguida estuga o passo, desce as escadas e desemboca na velha cozinha. Há pó por todo o lado. Tosse e leva a mão à boca. Chama.
 -Piedade, Piedade!
 A velha criada surgiu aos tropeções vinda de um canto. Apareceu-lhe assim de repente mesmo à sua frente. Assustou-se. Olhou-a com espanto. Parecia uma alma do outro mundo, tanta era a caliça que a cobria.
 -Minha Senhora… eu… nós… ai….tartamudeou.
- Ó alma de Deus, o que se passa? Vá lá, fala.
- O Júlio está ferido, o Luís desatinou… a parede dali ruiu, aponta na direcção da porta que dá para o pátio… na adega… as pipas…ovinho, vai para lá uns confusão… Estamos todos assim a modos que meios aparvados. Ai minha rica senhora…O Demo soltou-se, valha-nos Santa Susana mais S. Julião. Á medida que vai falando vai-se persignando rápida e continuamente.
-Piedade deixa-te dessas choradeiras e leva-me lá ao Julião que quero ver como o homem está.
-Ai minha rica Senhora aquilo não é coisa para uma senhora cuidar. Deixe os homens tratarem do Julião. Eles vão tomar conta do recado. Enquanto fala Piedade vai enrolando a ponta do avental de riscado preto e branco num desatino de gestos ensandecidos. Enrola, puxa, desenrola, puxa, aperta, desaperta. O tecido já de si gasto começa a mostrar uns buracos aqui e ali como se tentasse respirar dos apertões.
- Já te disse que quero ver como estão as coisas. Anda daí, agora!
A velha Piedade olha-a por entre o branco da cal, encolhe os ombros, agarra de novo na ponta do avental e sai para o pátio. Chinela com força sinal inequívoco de que a coisa está brava. Resmunga de lábios apertados. Apenas a cabeça parece o badalo do sino.
-Ai minha rica Senhora que desgraça, veja este desinço, veja…
Cá fora o vento continua a assobiar. O pó envolve-as. Com determinação procura o caminho que as leva ao outro lado junto a um logradouro. Ouve gemidos., procura firmar a vista nas sombras indistintas que se movem de um lado para outro.
-Oh Jaquim afasta-te, olha a Senhora
Os homens afastam-se ligeiramente abrindo uma brecha no círculo que envolve Julião. O pobre homem deitado no chão mostra uma série de arranhões mais ou menos profundos e pior do que isso é a perna que se mantém sob a pilha de pedras que se desmoronaram do muro do logradouro.
- Ajudem aqui, levantem o entulho. Tu Joaquim segura o Julião, isso. Ó Francisco vai com a Piedade buscar uma bacia com água para eu limpar o pobre. Vá rápido, mexam as pernas. Quem é que está mais ferido?
- Na adega algumas pipas caíram e há gente aleijada.
-Então mexam-se daqui e vão para lá. Chamem as mulheres. Que ajudem todos.
Os homens movimentam-se. Dirigem-se então afanados para a adega, pelo caminho vão batendo nos logradouros e chamando as mulheres que os seguem pressurosas.
Maria F. olha em redor. Na desolação do dia, S. Gião mantém-se fiel a si mesmo. Aqui e além abriram-se algumas brechas, as árvores vergaram-se e o caos instalou-se. O caos e o medo. Há pavor nos rostos, murmúrios nos lábios e preces nos gestos. Há que reorganizar, há que ser forte. E Caetano como estará, onde andará? Aperta-se-lhe a alma. Respira fundo, abana a cabeça como que a espargir pensamentos funestos e retoma a lide.
-Piedade, Piedade dá-me essa bacia mais os panos e trata de ir ajudar as mulheres na adega. Confio em ti para as orientares. Vá lá.
-A Senhora não vai fazer isto pois não? Pergunta a incrédula
-Claro que vou e é para já.Desanda que há mais gente a precisar de ajuda.
Enxotada do lugar, Piedade dirige-se para a adega de onde os lamúrios se ouvem cada vez com mais força.
Maria F trata de Julião enquanto Joaquim soergue-o e Manel mais dois moços tiram os pedregulhos. A perna deve estar desfeita pensa.
- Ó Manel quando acabares de tirar essas pedras, monta no cavalo e vai à vila buscar o Doutor Venâncio. O pobre não deve ter mãos a medir mas diz que é urgente, que vais da minha parte. Ouviste?
- Sim, minha Senhora.
Julião é retirado e levado para casa. Deitam-no numa enxerga posta na cozinha. As dores fazem-no perder o acordo. Vai e vem. Assim se manterá até à chegada do médico.
O dia foi forte em trabalho. Maria enredou-se no alívio das gentes de forma a esquecer a sua própria ansiedade. Pelas vésperas entrou de novo em casa, sentou-se no velho banco corrido da cozinha e por ali se deixou ficar. O cansaço era tremendo todavia este até era esquecido sempre que o marido lhe vinha à mente. Como e onde estará? A memória devolveu-o nítido, sobretudo aquele olhar que ela nunca mais esqueceria quando lhe disse que estava de novo de esperanças. Nem sequer um ano e meio ainda passara., agora parecia-lhe que fora há já muito tempo, tanto que nem sequer o conseguia segurar. Somente a luz que os olhos de Caetano desprenderam a tinham marcado. Lembra-se do marido a ter olhado demoradamente e depois ter sorrido. Aquele sorriso de macho feliz e pleno Ela. Sentira um certo desconforto. Nem sabia bem porquê. Algo irreprimível. Mas Caetano era mesmo assim. Um belo homem afável e risonho. O bigode alourado cobria-lhe uns lábios cheios sempre hilariantes. Os olhos cinzentos-claros como as continham o júbilo da vida. Quem o visse fardado e montado no seu “Brilhante” jamais pensaria que aquela figura austera e garbosa transcendia a folguedo. Caetano era dois. Um militar cioso, ríspido e autoritário. Um homem simples e feliz com a vida e os seus. Os amigos estimavam-no e apreciavam-no. A filha adorava-o, a mulher amava-o profundamente apesar dos pequenos estouvamentos financeiros. Mas ninguém pode ser perfeito, pensa Maria. Caetano é irrequieto por natureza. Adora mudar, ir de um lado para outro. Adora a cidade e os salões, adora receber, adora viver. Maria F. acompanha-o sempre. A vida de ambos é quase perfeita se não fora as mortes dos filhos. Filipe, Maria e Possidónio faleceram ainda bebés. Pusera um ponto final a tanta dor. Conformara-se com Ignes que era o seu encanto, A filha devolvia-lhes a alegria em cada dia Vê-la crescer fora talvez a maior dádiva. Era uma jovem notável atraia para si as atenções, naturalmente sem esforço. Primeiro era o rosto, a figura, e logo depois vinha a alegria vestida de encanto simples que envolviam. Aperta as mãos com força e exclama:
-Onde está Caetano? Venha, venha para junto de nós!
O vento, somente o vento ulula à sua volta. Detesta o vento. As suas memórias más vêm sempre encapadas de vento. Assistiu e assobiou à morte dos seus filhos Quando exangues de febre e doença caiam no leito, o vento dançava cá fora nas janelas. Qual dança macabra.
Maria odeia o vento, teme-o.
Desta vez não se encolhe nem protege os filhos sob o seu peito antes, ergue os punhos num desafio de cólera. O vento pára. Surpreendido. Depois ruge, depois grita, depois dança. Maria não ergue mais os punhos, Maria cospe num trejeito de raiva, as palavras.”-Não vencerá desta vez, não! Ele vai voltar. Não vai vencer, eu sou mais forte. Não me encolho, não fujo, cobarde! És cobarde,roubas e foges!
O vento pára paralisado. Quem ousou desafiá-lo? Uma mulher! Uma mulher!
Olha-a demorado e insidioso, olha-a na sua insignificância, todavia há algo naquele rosto que o faz retroceder, parece que todo o amor da Terra se concentrou num olhar que o desafia. Há tanto poder, tanta chama, tanto querer. Retrocede silencioso. Devagar, devagarinho deixa-a. As árvores finalmente descansam os seus ramos fatigados. A terra acalma-se no seu cobertor e o silêncio desce sobre a quinta. As vozes cessam. O mundo calou o seu fragor. Respira a dor do caos.
Caminha de regresso à casa grande. Tem dentro de si uma força, uma energia que a impele e a faz erguer ainda mais a cabeça sobre o pescoço esguio. Murmura:
-Amanhã virá. Estará aqui. Eu sei. Tenho a certeza!
Entra na cozinha meio desfeita e serenamente numa voz firme que ela mesma desconhece diz:
-Piedade!
-Deus nos Valha, Minha Senhora!
-Deixa-te disso mulher, vá deixa-te de lamúrias. Arranja um homem e vai a Gibraltar saber como estão as coisas por lá.
-Oh minha Santa Menina... Senhora isto é coisa do Diabo…Ai que vamos todos morrer.
-Cala-te e mexe-te. Deixa-te de disparates. Não quero ouvir choraminguices. Há muito que fazer.

Temos que cuidar dos vivos, dos que houver. Os mortos já estão descansados.
- Ai minha rica menina, … e o menino, o Senhor Caetano? Ai por…
-Cala-te já te disse.
 O Senhor Caetano meu marido, está bem.
-Está? Ai…
-Está sim, eu sei.
-Se a Menina, a Senhora o diz…Oxalá! E enquanto profere as palavras ergue as mãos ao céu numa súplica muda, ao mesmo tempo que abana a cabeça, mexendo os lábios num monólogo aziago.
-Cala-te e vai fazer o que mandei. Não posso perder tempo com disparates., ouviste?
 A voz era ríspida, autoritária escondendo a insegurança e o medo que se gerara no seu íntimo, porém ela era a Senhora de S. Gião competia-lhe transmitir firmeza e orientar aquelas pobres almas que se dobravam à desgraça como espigas em dia de vento. Mas como se sentia vulnerável, Oh Deus como temia…
Pouco a pouco os ecos da desgraça são trazidos pelas gentes, que chegam ou que passam fugindo ou procurando um refúgio. Houve lugares onde o caos foi grande. Consta que Lisboa ficou destruída, consta que houve muitas mortes, consta que a desgraça inundou a cidade.
Os amigos e parentes começam a chegar. Vêm espavoridos, de olhos arregalados. Há medo nosso rostos e no olhar existe o temor do desconhecido. Parece que esperam por algo. Trouxeram-lhe notícias de Caetano. Estava bem. Não podia vir por ora o regimento estava a braços com o caos instalado. Logo viria. Acalmou.
Nas freguesias em redor o caos foi grande., porém Santa Maria segundo o pároco António Ribeiro “foi das mais livradas do terramoto” contudo a igreja de Santa Maria do Castelo viu as suas duas torres ruírem.
Por todo concelho houve, à excepção de A-dos-Cunhados, casas e lugares ficaram assolados pela terra ou então ruíram quais baralhos de carta. Quando o tempo serenou foi tempo de arregaçar as mangas e deitar mãos às obras erguendo tudo de novo. Assim foi.
Quando o verão chegou, no ano seguinte, ainda havia sulcos da desgraça todavia lentamente tudo brotou. Os campos foram particularmente férteis naquele ano. O acordar dos dias. A vida voltou à sua ladainha. A casa, os campos, as crianças, Caetano que voltou para casa Ficou aquartelado definitivamente em Torres. Tudo regressou ao normal, quase tudo. As feridas sararam mas a memória não. A lembrança daquele dia de Todos os Santos permaneceu um marco cronológico. Um antes e depois.
Maria retomou a sua graça no governo da quinta. Caetano dividiu-se entre o regimento e a boémia.
Quando Inês tinha dezoito anos a casa vestiu-se uma vez mais de panos negros. Uma febre levou-a. Foi um desgosto enorme para Maria e mais um motivo de solidão. Caetano despediu-se definitivamente da família e entrou na descida rápida da destruição. O álcool secou-o, embotou-o e destruiu-o. Tudo em meia dúzia de anos.
Enquanto isso José crescia. A quinta de entre-vinhas foi a sua melhor companheira. Aprendeu no calor seco da terra quase arenosa a força do querer. Soube que era ali a sua morada não só a física mas também a fonte do seu espírito. A terra vestiu-lhe os sentidos e moldou-lhe o físico.
José era S. Gião no seu melhor.
José fez-se homem. Os olhos negros grandes e aveludados eram a sua arma. Bebiam neles outros olhares ardentes, outros rostos. Porém José era a vinha de caules nodosos e cachos doces.
José casou com Maria do Carmo, filha do alferes Rodrigues Lisboa. Menina prendada, suave, de grandes cachos loiros como os bagos da vinha, olhos da cor da videira em dias de Primavera. Era meiga a sua Maria do Carmo. José bebia nela a sua força. A vida continuou por S. Gião ao ritmo das terras. Ora em pousio, ora aradas, lavradas, cultivadas, em flor e depois colhidas. Um ciclo de tempo, tempo de vidas.
Maria do Carmo e José tiveram vários filhos.
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17 março, 2016

Mulheres Com Rosto

VIII
1891
Maria da Nazareth atravessa apressada o pátio de casa. São quase dez horas. Já deveria estar em Runa à quase uma hora. A mãe tinha-a chamado para lhe dar conta dos problemas que estavam a atravessar. A doença das vinhas, o dinheiro mal investido, as despesas quase loucas de João, enfim um todo de desvario que já vinha detrás há muito tempo começava agora a reflectir-se. Chamara-a apesar de ela ser a terceira, pese ser rapariga, pese ter dois varões, pese um sem fim de coisas. Zinha saiu preocupada. A mãe, sempre a tivera como uma mulher objectiva de inteligência viva, agora parecia claudicar perante as dificuldades que se adivinhavam. Na verdade S. Gião era quase um sorvedouro de dinheiro e os tempos naquele ano de 1891 não se avizinhavam nada fáceis.
A morte prematura do pai onze anos antes mergulhara-os numa sonolência que durou quase três anos. O desgosto da mãe fora algo que a marcara. De uma mulher bela e viva tornara-se numa sombra. Mais uma naquele casarão dorido. Os seus cabelos cor de avelã tornaram-se cinzentos, o rosto murchou, os olhos perderam o viço que a tornava tão apelativa num esplendor que causava inveja. Zinha cresceu na tristeza e amadurecendo muito depressa.
Os irmãos eram fonte de mágoa para a mãe. Somente José que ela estragava, pois que apesar das dificuldades que a casa atravessava, nunca lhe negava nada. João vivia em Lisboa numa ociosidade feita ou dita política, gastando, gastando ao mesmo tempo que se enfarinhava nos meandros republicanos. Caetano era a terra, até fisicamente. Um tronco de quase dois metros robusto, erecto. Não era elegante o seu irmão. Era isso mesmo forte, fiável e sisudo. Herdara do avô aquele amor pelo campo. Saía de manhã e regressava ao anoitecer. Era de poucas falas, e quando tinha que dizer algo, as frases eram monossilábicas. Acompanhava os homens no campo, corria as propriedades de ponta a ponta, se necessário duas a três vezes ao dia. Caetano e o cavalo faziam um só. Quando algum moço se aleijava era ele que de imediato tomava o seu lugar na jorna. Caetano fazia tudo isto, no entanto, quando se tinha que sentar e discutir com a mãe ou com o Julião feitor as medidas a tomar ou outras resoluções, ficava quedo e mudo, coçava na cabeça e simplesmente acenava ou emitia sons de discordância. Um simplório assim o via Zinha. José nos seus dezasseis anos deixava já antever o futuro homem. Era extraordinariamente bem-parecido. Sempre fora, aliás ele e Maria de Santo António eram os filhos mais bonitos. A irmã nos seus onze anos revelava já a o esplendor da beleza futura. José preocupava-a. Detestava trabalhar, fazer fosse o que fosse. Era pura e simplesmente indolente. Quem o olhasse naquele seu sorriso sedutor, quem o olhasse mesmo por detrás das pupilas via uma bargantaria que não era própria da sua idade. No entanto, ela estava lá, ainda inconsciente em semi-dormência. Mas o futuro não lhe seria risonho. Tinha a certeza. José era o ponto fraco da mãe. Enquanto com João travava uma guerra dura de palavras, as quais eclodiam permanentemente em silêncios e partidas, José, pelo contrário, fizesse o que fizesse, era sempre desculpado. Zinha não percebia, a não ser pelo facto de, ele ser o mais parecido com o pai, que por sinal se não fora o retrato que estava em cima da mesinha no quarto da mãe, já lhe esquecia as feições. Zinha lembrava-se dele como alguém que vivia junto deles sem partilhar-se. O pai era a sombra da mãe quando juntos, despejavam uma luz que os envolvia. Apenas aos dois. De fora ficava o resto, os filhos e os outros. Depois, assim de repente partiu. Tinha apenas quarenta e cinco anos indo para os quarenta e seis. Não chegou a fazê-los. A mãe ficou louca. Perdeu a razão. Perdeu a vida. Lentamente regressou, mas nunca mais foi a mesma. Eles, os filhos cresceram. Cada um a seu modo, cada um por si. Aprenderam a ser silenciosos, a pensar mais do que falar, aprenderam sobretudo a partirem de si e dali.
Zinha escuta o sino na parede da velha ermida enquanto entra no cabriolet. As terças já são calendas. Dali a Runa é um pulo ao Real Hospital dos Veteranosque a par do hospital das Misericórdias lhe ocupa os dias. Entre o vai e vem dos meses, Zinha sente que a vida escorre depressa. Uma roda em movimento. Sair da casa das sombras é um imperativo. Estar entre e com os inválidos, as crianças e os desvalidos é sentir calor humano, é sentir, que apesar de dorida, a vida ainda existe. A sua enorme fé torna-a piedosa e humana.
Zinha é uma jovem cujo porte a coloca imediatamente no meio de onde proveio. No mundo entre vinhedos que é o seu, seria definida como de excelente cepa. E era verdade. Embora vista a bata branca que lhe tapa o vestido ou a saia de bom corte e segundo os ditames da moda, há nela uma altivez doce é certo, porém distingue-a dos demais. Os olhos vestidos ora de verde ora de cinzento de acordo com os dias e os sentidos estão quase sempre húmidos O olhar é a janela do seu corpo. Nele transvazam as emoções que sentem, misto de determinação e fé.
Quando afaga as chagas, limpa a carne, liga, endireita, lava, cobre e sorri, a sua determinação em minorar o sofrimento está ali, mas a fé também. As suas mãos são a matéria dos seus actos, o amor que elas espalham é a transmutação do afecto que a cinge. Mas todo este caudal ergue-se da invulgaridade do seu carácter. Uma mulher doce mas fortíssima. Um pilar de alabastro.
A mãe não compreende lá muito bem aquela paixão pelos doentes e pelos feridos, pelos desprotegidos, pela miséria humana venha ela de onde vier, não compreende como uma jovem, sua filha, nascida em S. Gião de Entre as Vinhas, e ainda por cima tão atraente gasta o seu tempo entre os enfermos, os pobres e os excluídos.
Para Zinha,a mãe é um símbolo que ela respeita mas jamais adoptará. Um mundo que se está a esboroar. Zinha é jovem mas olha em redor, lê e sente no corpo tanto como no espírito que algo vai mudar. Que uma nova era vai começar. A mãe queixa-se frequentemente que o mundo está de pernas para o ar. Que outrora tudo era diferente, que havia respeito, que hoje os criados não obedecem, que é preciso mandar fazer as coisas mil vezes, que são calaceiros, que querem ser iguais. Ora isso é impensável. Onde é que já se viu uma coisa assim. Ela Maria, filha de fidalgos ser igual à Berta, Piedade, Julião ou outros que tais. Impensável!
Os anos correm velozes. O século está quase a acabar. Um novo virá. Neste advento existe muita esperança, muita coisa por mudar. Zinha vai cruzá-lo com a determinação capeada do amor que a agasalha.
O cabriolet chega a Runa. A alameda que a conduz ao belo edifício está ali mesmo defronte dos seus olhos. Ladeiam-na laranjeiras em flor cujo aroma a envolve à medida que as passa. A manhã brilha sob o sol. Lá dentro a luz despiu-se entre corpos 
Mutilados, rostos vazios, olhares opacos e almas doridas. Homens, a quem a falta de uma perna, de um olho, de um braço contam menos do que a falta do amanhã. Eles sabem que logo a seguir à porta, no primeiro degrau de descida, o porvir escorregou estatelando-os para sempre no limbo da invalidez.
Há um, nestes casos, há sempre um que chama mais por nós, que nos toca, que nos ensombra. Também para Zinha há um. Chama-se Pedro, anda nos seus sessenta e muitos anos. Tem uma bela cabeça. A neve cobriu-o antes de o inverno ter chegado. É branca e brilhante. Pedro é um velhote empertigado na falta da sua perna esquerda. Uma muleta de pau, substitui-a, contudo ele até saltaria para o mundo apenas com essa imperfeição, pequena segundo ele, mas a sua maior dor, são os olhos que se esvaziaram. Não vê o mundo nem as gentes. Ouve e pressente. Conhece os passos de todos, reconhece-os no cheiro que o inunda e lê-os nos sons que percebe. Benedito não tem família. Está só. Não foi escolha, foi destino Fugiu de casa ou da miséria quase criança. Entrou no mundo dos homens pela porta detrás da razão. Conheceu a guerra antes de ter conhecido o amor. Perdeu-se de si muito antes de ter perdido a perna e os olhos. Depois foi no escuro dos anos, entre as paredes do asilo que aprendeu a ser pessoa. Quando em 1829 com apenas dez anos fugiu de casa e correu atrás do rufar dos tambores, não lhe passava pela cabeça que cinco anos depois seria um estropiado. Era ainda uma criança. Aos catorze anos já uma baioneta lhe vazara os olhos e a pólvora lhe arrancara uma perna. Como é que um garoto de catorze anos lida com cenários de morte?Não lida, simplesmente deixa correr, encolhendo-se aqui, abrigando-se ali, tremendo agora, vomitando depois, e no fim do dia esperando sempre pelo caldo. A razão? A causa? O fascínio da batalha que sempre entrapou a imaginação de feitos. Depois, por outro lado, a barriga vazia, os pés rotos de sapatos, o ranho seco no rosto, os andrajos que mal lhe cobriam o esqueleto magro tinham-no empurrado. Correra atrás dos tambores em passos trémulos de criança. Engodado, vira-se vestido e na barriga um caldo aguado mas quente. Sonhos de um presente sem seiva de futuro.
Cruzou veredas, ribeiros, caiu, levantou-se. Enlameou-se, rasgou-se mas o caldo aparecia. Havia barulho, havia riso, havia uma espécie de afecto dos outros. O Cabo protegia-o. Chamava-o para perto de si. Ia-lhe dando uns bocados de peixe seco e uns naquitos de pão. E ele sorria feliz. Tanto! Nunca tivera tanto! Passava-lhe a mão na cabeça que recomeçava a cobrir-se de negro. Pedro acreditava que era feliz. Tanta afeição!
Mais tarde em Maio a dezasseis, ao despontar do dia quando a bruma ainda se espreguiçava, os canhões troaram. Ele não participara no ataque de cavalaria. Era bom de ver. Mas aqueles bravos galoparam para a morte. Hoje pensa que o sabiam. Santa Cita, a aldeia fora arrasada e na charneca o fumo era tanto que parecia que ardia é então que o general Guedes de Oliveira mandou avançar com a cavalaria comandada pelo oficial francês Puisseux, um homem alto e de rosto traçado por uma cicatriz que lhe rouba qualquer sorriso aberto. A vitória parecia então pender para os miguelistas, tanto que os Lanceiros da Rainha tinham já retrocedido, no entanto, depois de tanta refrega e de terem atingido o alto da colina, vêem mesmo a seus pés, lá em baixo, formados em linha, os soldados do coronel Vicente Queirós. As salvas disparadas numa sucessão asfixiante feriram mortalmente os camaradas e sobretudo Pussieux A partir dali, os liberais tomam o comando da refrega. Cabe-lhes capitular. A charneca cheira a morte, ele não viu o resto porque foi por ali que tudo ficou negro. Um balázio entrara-lhe na cabeça, outra rebentara-lhe uma perna. O cheiro do sangue quente, a molhar-lhe os sentidos foi a sua última memória daquele dia. O resto foi o silêncio.
Acordou num dia sem data nem cor. Antes houve espaços com vozes, houve espaços de movimentos, no entanto a memória é fugaz, algo muito, muito longe. Registos breves sem sulcos. Quando despertou do mundo da morte, não viu contudo ouviu. Não estava na refrega. Não estava na charneca. Havia outros sons. Percebeu que estava noutro mundo.
As vozes eram mais macias e as mãos que o tocavam possuíam leveza mitigando-lhe o ardor que lhe roía o corpo vindo da perna. Era um o calor imenso molhando-o de suor,roubava-lhe a respiração e as dores faziam-na latejar de tal forma que a sentia enorme e pesada. E ele sem saber que já fora amputada. Tentou chegar-lhe, tentou mas não conseguiu. Depois a escuridão, sempre a escuridão. Deitou as mãos aos olhos. Uma enorme venda tapava-os. Tentou puxar o tecido. Alguém impediu, agarrando-lhe firme mas suavemente as mãos. Falaram-lhe, muito, embalado voltou a dormir.
Durante doze anos penou aqui e ali. Foi um tempo amargo. Tão penoso, que nem sequer, gosta de os recordar. Mas chegou o ano de 1846. Rememora quando aqui chegou
Ouvem-se as vésperas. Zinha arruma as últimas ligaduras, ajeita os cabelos, alisa o avental branco, lança a capa pelos ombros e faz a sua última ronda. Tudo parece em paz. Não teve tempo sequer de trocar umas palavras com Pedro. Foi um dia particularmente cansativo. A doença, quando chega, ataca tudo e todos. E eles são tão frágeis.
Percorre o corredor que a conduz ao edifício central, à igreja. Ali encontrará Pedro pela certa. Embora seja muito piedosa e crente, este lugar causa-lhe um arrepio. É austero. Tem demasiado mármore para seu gosto. Apenas a cúpula que se abre sobre a nave devolve-lhe a luz do sol, inundando os nichos de mármore a entornando um pouco de cor ao lugar. Pedro, apesar de cego é o sacristão. Vive entre os altares, os santos, cálices e missas. É um bom homem. Doce e todavia firme como um rochedo. Sabe-lhe bem aquele interlúdio de meias palavras, meios silêncios. Um pedaço de alimento para o espírito.
Entra na igreja, genuflecte rapidamente benzendo-se e olha em redor à procura do sacristão. Não o vê.
-Deve estar pela sacristia - pensa enquanto se encaminha para a esquerda do altar.
Empurra a pesada porta de carvalho que se encontrava entreaberta. Sentado numa cadeira Pedro polia um cálice com toda a perseverança e amor que as suas mãos gastas conseguem.
-A menina Nazareth! Já sentia a sua falta!
- Pedro estás aí na escuridão, porque é que não abres a portada e deixas entrar o resto do sol?
-E que mais faz? Com luz ou sem luz é sempre igual…. Ai menina, ai menina, até se esquece.
-Claro que não me esqueço, claro que não é a mesma coisa, o sol aquece Pedro e isto está um gelo.
-Nem senti menina, tenho tanto que fazer.
-Pois, pois. Amanhã vais dar uma volta comigo pela mata. Precisas de apanhar um pouco de ar e temos que por as nossa converseta em dia. Há algumas coisas que te quero contar. Hoje já é muito tarde e tenho que regressar a S. Gião. Mas amanhã já sabes.
-Está bem menina Nazareth. Eu nem sei como seriam os meus dias sem a menina.
-Ora deixa-te disso.
Zinha afaga o rosto do ancião e aperta-lhe a mão com carinho. Depois dá meia volta e dirige-se para a velha porta.
-Até amanhã meu amigo.
- Até amanhã menina.
Já cá fora desce apressada os degraus, senta-se no cabriolet, segura nas rédeas pondo-se em movimento. Um acto que gosta de fazer. Ter nas mãos as rédeas, conduzir suavemente o seu próprio destino é algo que a apazigua.

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