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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

30 maio, 2012

Depois de Amanhã (IV)

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Recorda a noite de ontem.
Fora jantar fora com o marido. Nada mais banal e todavia tão íntimo, tão aconchegante. Aquele silêncio cúmplice que os une. Não são necessárias palavras, elas, por vezes, até quebram a harmonia.
Manuel o homem, companheiro, marido, pai e amigo. Tanto numa só pessoa.
Mas ontem, enquanto jantavam e trocavam vários monossílabos sobre a comida. Houve, a alturas tantas um olhar que a fez pensar. Manuel olhou-a como se acusasse. Foi fugaz, mas esteve lá.
Sofia sabe que ele ama o filho, mas a partilha da mulher substituída pela mãe, foi sempre algo que lhe causou algum desconforto.
Não é um homem de grandes gestos ou palavras. Simples, direto. O silêncio diz o que a boca não profere. Não sabe, ou não é capaz. Uma cultura.
Mas no seu sentir monolítico, ela sabe onde depositar a cabeça, o olhar e até as suas inseguranças. Ele está sempre ali a seu lado. Não é janota e muito menos dandy. Não é blasé. É apenas ele, Manuel Monte, o seu marido.
Apesar do seu modo simples é um sonhador, um idealista, um quase puro. Acredita nas pessoas, nos gestos e até nos sorrisos. Mais tarde, vem a ira, a raiva quando descobre que o boneco que em que confiou, seu irmão, é mesmo de papelão podre.
Mas ontem quando lhe disse:
-Mas Sofia tens mesmo que ir? Não vais desatar a correr para lá sempre que o Manel te telefonar a choramingar.
- Ó Manuel o nosso filho não choramingou, apenas me pediu um pouco de ajuda. Afinal o nosso neto nasceu há bem pouco e a Lena precisa de uma mãozinha.
 - Pois, será, mas não me convences. A tua nora não tem mãe?
-Claro que tem. A Alda já lá esteve durante quase quinze dias. Agora é a nossa vez.
-A nossa? Tem lá santa paciência que nessa eu não embarco. Vais tu, já que queres ir, e fica-te muito bem, mas minha querida, mas não contes comigo.
- O quê? Então vou sozinha?
- Ah pois.
- E o que é que vais ficar a fazer, posso saber?
- Ah essa agora. Tenho tanto que fazer! Vão ser uns dias de férias conjugais tal como fazíamos ao princípio de casados, lembraste?
- Ora se me lembro…e deixa-me que te diga, que nunca gostei lá muito da ideia.
-Pois olha, sempre me pareceu que ias a gosto, direitinha para casa dos teus pais. Tu mais o garoto.
- Manuel pensa bem, vem lá…
- Não e não. Estivemos lá quando o bebé nasceu. Demos os nossos préstimos. Agora a vida é deles. Têm que aprender. Tu também te desenvencilhaste sozinha, não desenvencilhaste? E eu também, que remédio! Porque é que agora se dá esta protecção toda aos filhos? Eles não são imbecis. Levamos uma quase vida a ensiná-los, a dar-lhes todo o tipo de ferramentas, para serem autónomos, bem sucedidos, gente melhor do que nós e continuamos com a mãozinha por cima e por baixo a segurar-lhes a vida? Olha, cá por mim, não e não. Crescer, tem que se fazer em todas as direcções. Porém tu és senhora e dona de ti, faz o que achares que deves fazer. Ponto final. Vamos falar de outra coisa.
Embora ligeiramente crispada, Sofia sabia que Manuel tinha toda a razão do mundo. Calou-se, não fez ondas. O silêncio por vezes é a melhor forma de aquiescer. Mais de um quarto de século de casada, já lhe dera os degraus para a cátedra do matrimónio.
…… ……………………………….
Sofia olha-se no espelho do seu quarto de rapariga.
Gosta do que vê. O vestido comprido cor de champanhe, corte simples mas elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas eternas rosas.
Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.
Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval, a imagem não reflete os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se: Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os ombros. Assim seja.
Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que mergulhar na alegria do dia. Urge.
Deseja que termine. Sempre foi diferente. Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio. Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente do hoje. Sofia apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se, porém o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí que lhe adviera esse desassossego de tempo.
Mas hoje e era o seu dia. Sofia casava-se. Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação., pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas de muitos tamanhos e cores., pelo menos para ela.
Desse dia, tem, sobretudo, a memória das pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do divertimento sempre a espantou.
Mas naquele dia, tão especial, Sofia sorriu tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das palavras se alteram de acordo com o estado de espírito e sobretudo se este for coletivo.
Mas Sofia cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.
Manuel.
Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo, todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também desempenhou o seu papel. Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto, já me sinto legal”.
Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis dizer, sabendo de antemão todas as reticências que ele tinha em relação ao casamento religioso, a festas sociais. Ostentação dizia.
Porém naquele dia foi gloriosamente simpático. Disseram dele: Uma jóia de rapaz!
Um prenúncio de outros dias.
Como o tempo se foi!

Um comentário:

Motta disse...

Quando poderei ler a parte seguinte?