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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

24 maio, 2012

Depois de Aamanhã ( III)

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Eram quase oito da noite quando o filho nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela linha dos rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade sem sons ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou. Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida mas feliz. Levantou-se e sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.
Chamou-lhe Manuel, Manuel Maria, como o pai e como ela.
O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu. Ele ficou homem, ela mais velha. Ele foi pai, ela avó.
O tempo sem tranca que varre a vida.
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Recorda os tempos de juventude. Enormes, quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos grandes cultos, dos enormes altruísmos, dos derrubar dos dogmas sociais, na construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as suas lutas, quebrara alguns tabus, sabe-se lá à custa de muita lágrima, zanga e tantos outros dramazinhos familiares. A peça da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Porém fora noutro continente que a realidade do conceito se fizera, por aqui na velha Europa, e sobretudo no Portugal dos anos setenta, nada fora tão simples ou melhor tão radical. Um banho-maria como tantas outras mudanças. Um país sempre aquecido entre dois tachos. As mentes ainda estavam alojadas no preconceito geracional. Os que ousavam quebrar as convenções eram muito poucos, e pertencentes a um grupo social de desafogo económico. Os chamados meninos do papá. Estes podiam divergir, fugir, e ludibriar o sistema que o status  quo cobria-os, tal como hoje ainda. À chamada classe média, muito média, eram exigidos comportamentos padronizados e sobretudo decoro, dito moral. Pobre daquele que ousasse quebrar a norma Hoje, ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar os lábios. Tão ridículo! No entanto na altura geraram-se conflitos familiares, zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e ,rapidamente os costumes mudaram. Tomou-se como natural o que até então era proibido. As massas ululam ao sabor do vento, melhor as mentes mudam tal como o vento sopra. E se sopra com força então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento, diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, as caras adquiriram rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos ideais metamorfoseou-se em peralvilhos de sebosas contas bancárias aqui, ali, em idílicas offshores. Os charros passaram praticamente a ser um quase apanágio de uma pseudo-elite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma geração que sonhava sempre que respirava.  Respira ,hoje, entrecortadamente a ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente voltados para um jardim que já não existe.. As penas já são tão toscas que até faz dó, pese o brilho da projecção.
Houve um desbragar de convenções, o caos, diziam os mais velhos, então. E nós riamos, riamos porque o sentir era impune, porque éramos jovens e heróis Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, vento e a terra. Os primeiros ecologistas não assépticos. Sofia sorri abertamente. Tem orgulho de pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de descoberta, de aquisições, de luta.
Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento e persistente.
Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do Jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente Uma hippie repleta de alquimia do tempo.
Caminha mais segura. Não olha nem para a esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente.
A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua sentada por cima da janela do comboio.
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