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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

22 maio, 2012

Depois de Amanhã (II)

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-Minha senhora o café vai ficar frio…
Encara o empregado que a olha perspicaz. Murmura:
-Oh desculpe, obrigada.
Pega na chávena e dirige-se para a mesinha junto à janela. Senta-se, e devagar, saboreando, sorve o líquido.
Um olhar. A noite caiu. O comboio continua seu o tricotar metálico. A noite será o seu tempo.
Olha em volta. Dois homens ainda jovens. Um tem a cabeça descaída sobre o peito. Dormita. O outro lê o jornal. Infindável a leitura de um jornal num comboio. O conteúdo dos artigos ultrapassa-se para além da frase. É nas entrelinhas que se chegam às grandes conclusões, e dali se extrapolam os conceitos.
Extrapolar. Imperceptível, é o sorriso, que lhe aflora os lábios. Quantas vezes, ela ouviu, mesmo a seu lado, os sentidos extrapolarem a razão? Tantas, o dia-a-dia feito multiplicação.
Do outro lado, duas jovens conversam animadamente. Apura o ouvido, não por curiosidade, mas para ocupar o seu tempo. Escuta:
-Ó Sara deixei de o curtir. Pronto.
-Assim, de repente? Vocês andavam já há bué de tempo.
-Sim, três meses. Atrofiei, sabes? Parti p'ra outra.
-Hum. Percebo. Tá. Tudo na boa.
Desvia os sentidos para outro canto. Um casal de velhotes ampara-se no trepidar do comboio entre duas sandes de pão branco e mole e uns goles de um líquido qualquer. Trincam devagar, gostando. Os copos são levantados em compasso. Bebem e voltam a poisá-los. Entre um acto e outro entreolham-se sorrindo. Gozam o momento. A idade deu-lhes isso. Roubou-lhes a juventude e presenteou-os com a singeleza. A troca dos anos. O velho ditado “ a vida dá e tira” é tão acertado, pensa Sofia. Sente uma especial ternura e uma quase inveja pelo casal de velhotes. Como chegaram até ali! Tantos anos…
………………
Naquela tarde, enquanto dava a segunda aula, sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo  ao lado da secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, oprimido. Sofia entreabriu a janela, porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo sem ar.
Caminhou pela ala entre as primeiras carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão e resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali, e ei-los distendidos. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso.
Continuou no seu deambular explicativo, enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido intacto ao ar pesado da sala.
E o tempo decorreu. E a campainha tocou.
O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a tornarem-se estrídulas. Sofia sentia-se zonza, cada vez mais.
Agora era uma agonia vinda não do estômago, mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.
 -Sofia estás bem? - Ouviu muito longe, a voz.
Quis dizer algo mas a língua estava presa, o rosto também. Havia como que um força a tomá-la. E lhe tirava a clareza do dia, embaciava-lhe o cérebro.
Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.
Estava num sítio diferente, estranho, quase diria esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além. Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era diferente. Cansou-se e fechou os olhos.
À medida que o tempo passava, a outra vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração começavam a tomá-la.
Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o mas o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia preocupar agora que tinha acordado e via o mundo à sua volta com outras formas. Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas. Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.
Sofia suspirou por entre os lençóis de barra verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados de macerado, sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava a espreitar.
Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos. Lapsos de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Sofia. Lapsos que, sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Uma mulher com sorte diziam-lhe.
Talvez sim, talvez não. Já depois, muito depois quando pensava no caso, Sofia murmurava para si. Talvez sim, talvez não.
O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara? Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso ,quando a vida está em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não, não era displicência, nem um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: Já lá vai, mas voltará. A inevitabilidade que sempre a coabitara E foi com um encolher de ombros que também se lançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo, sabia que levaria a melhor, e assim de mansinho exterior, mas com a força interior, atirou-se, e conseguiu.
Sofia venceu a batalha, agora a guerra? Isso, não sabe, mas o que importa, e depois quem o sabe?
A sua vida em pequenas lutas. São os quadros que a pintam.
E os pensamentos quais gotículas de cacimbo deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em apregoar. Aliás a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquenta e oito anos e do amanhã de todos os dias.
Uma mulher sem história ou uma história de mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objectivamente o seu trajecto. As horas deslizam velozmente à medida que o comboio avança. Amanhã terá muito que fazer.
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Um comentário:

Mar Arável disse...

Sempre belos os seus apeadeiros contados

da vida