Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

30 agosto, 2010

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Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
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Fernando Pessoa

19 agosto, 2010


Gentleness





























The firste stock-father of gentleness,
What man desireth gentle for to be,
Must follow his trace, and all his wittes dress,
Virtue to love, and vices for to flee;
For unto virtue longeth dignity,
And not the reverse, safely dare I deem,
All wear he mitre, crown, or diademe.

This firste stock was full of righteousness,
True of his word, sober, pious, and free,
Clean of his ghost, and loved business,
Against the vice of sloth, in honesty;
And, but his heir love virtue as did he,
He is not gentle, though he riche seem,
All wear he mitre, crown, or diademe.

Vice may well be heir to old richess,
But there may no man, as men may well see,
Bequeath his heir his virtuous nobless;
That is appropried to no degree,
But to the first Father in majesty,
Which makes his heire him that doth him queme,
All wear he mitre, crown, or diademe.

G.Chaucer
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04 agosto, 2010

O combóio

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O combóio

Com as mãos trémulas e engelhadas abre o jornal. Na página três. Metodicamente percorre as linhas das colunas. O rosto vai-se contraindo, à medida, que mastiga o conteúdo. O olhar salta para a imagem. Lá estão eles sentados no semi-círculo do Teatro Português. As deixas, essas pobres nem rir fazem., são farrapos de ideias com tempo cronometrado. Não são espontâneas. A Infernal Comédia dos Dias. Suspira. Folheia a página seguinte. Nada de novo. A ladainha das palavras repete-se. Cruza a perna magra que se ajusta perfeita no contorno dos ossos. O tecido das calças baloiça na largura. São castanhas da cor do Outono. Olha de soslaio o relógio da estação. Falta ainda quase meia hora. Veio cedo. Fernando chega sempre cedo e parte a tempo. Gosta de sentir as horas a escorrerem.

O casaco de quadrados afaga-o. O vento resolveu soprar. As páginas do jornal agitam-se, mais do que as notícias. Os ponteiros continuam a deslizar de mansinho na manhã de neblina. Ouve o apito do combóio. É o das dez.

O combóio pára. Descem dois passageiros e ninguém sobe. O combóio chega. O combóio parte.

Aquele ranger de ferros, o restolhar do silvo, o chiar e o silêncio. Ajeita o nó da gravata. É verde. Verde. Ele gosta de verde, sempre gostou. Combina com a cor dos campos, da bandeira, e vá lá uma pontinha de vaidade, com a cor dos seus olhos. Estão gastos mas ainda têm um pouco de brilho das folhas macias. É a cor da esperança. Idiota. A esperança não tem cor. Tem luz. Isso, só luz.

Fernando fecha o jornal. Dobra-o cuidadosamente. Alinhado. Baloiça o pé direito calçado no sapato inglês. Castanho. Castanho e verde, as cores da sua idade. A idade, pensa Fernando tem cores. É branca quando nasce, rosada quando cresce, cobre-se de azulão, vermelho e laranja na juventude, aperalta-se de todas as cores quando madura, na descida adoça-se de ocres e verdes, e no fim tapa-se de cinzentos gélidos e brancos tristes.

Fernando olha, uma vez mais, o relógio. Ainda faltam dez minutos. Tem tempo de ir à casa de banho. Na sua idade tudo tem que ser acautelado. Sorri. Recorda outros dias quando de um salto apanhava o combóio. Numa mão o saco, na outra, o movimento do corpo, o gesto dos anos. As horas esperavam-no e, ele trocava-lhes os minutos. Hoje, ele espera as horas, e os minutos fogem-lhe. Levanta-se. Lentamente dirige-se à casa de banho. O cheiro dos urinóis invade-lhe as narinas. Sempre há coisas que não mudam.

Está de pé defronte do pequeno jardim de buxos verdes. Sabe que a carruagem número dois vai parar ali. Já conhece tudo. Já não precisa de saltar. O combóio surge na esquina ao fundo. Ajeita o casaco, coloca o jornal sob o braço direito, apalpa rapidamente o bolso onde está a carteira e espera. O combóio entra na estação suavemente. Sem grande alarde, pára mesmo diante de si. Um só passo e ei-lo que sobe os dois degraus. Empurra a porta e rápido, tanto quanto as suas velhas pernas lhe permitem, senta-se junto à janela. Olha para o exterior e ,só depois para o interior. Já conhece os rostos tal como as suas memórias. Catálogos de imagens

Soa o apito, o combóio mexe-se. Lenta e timidamente. Depois, já longe da estação e, dos múltiplos carris, sózinho, desperta e ei-lo a correr agilmente.

Fernando respira fundo. A viagem de combóio traz-lhe sossego. Gosta daquele correr de paisagem. Lembra-lhe a sua vida. O tal catálogo de rostos. Gosta de os ver assim a correr, a misturarem-se numa amálgama de traços e cores. Folhas da vida que se debulham rápidas e soltas. Passam num arrepio de tempo. O rosto da mãe está junto do canto da janela, sorri-lhe, o do pai cujo dedo em riste o faz suster a respiração, não se lembra já do que fizera. Ele deitado, saciado, no areal morno. Um rosto sorridente divide o sentir. Luísa. Recorda-a. Sorri abertamente. Agora são crianças, crianças que o olham temerosas. Rostos pálidos. Camas. O hospital. Fogem também, ficam para trás. Uma bata branca, murmúrios, luzes, rostos e mais rostos, Silêncio. Uma mesa, adornada de gente com olhos a rir, enche ao vidro da janela. Ele está lá. Mariana de olhos profundos ri, ri e junta as mãos naquele jeito de criança. Mariana a sua mulher. Outra imagem que rebola no vidro e foge rápida. Mariana, fria, a doença levou-a. Não corre, demora-se a visão. Abraços apertados, lágrimas que não saíram. Solidão. Vê-se sentado, as mãos escondem o rosto. As crianças a seu lado seis. Cabeças em movimento, rostinhos de amanhã, olhares doces. Agora em slow-motion uma estrada, solitária, franjada de belos plátanos cujas folhas caem em dança de outono, uma casa ao fundo, bem lá no fundo. Outra imagem, um recanto de flores .Maduras. Serenas. As imagens diluem-se Embrulham-se nos seus traços de carvão. O livro fecha-se.

Cerra os olhos e olha o vidro. Vazio. Lá fora, os campos estremecem com o passar do combóio mas logo serenam. As recordações são humanas, somente humanas, muito humanas. São pedaços de vida gravados na carne da memória.

O combóio respira ruidoso na curva que antecede a estação. Em seguida desliza tranquilo. Pára num suspiro de vida. Fernando desce. É ali o seu destino. Olha em redor, traga a neblina, aperta o jornal, estuga o passo e recomeça o seu caminho. O silêncio empurra-o.

No fim está ainda o presente e, amanhã o combóio também virá.

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