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14 dezembro, 2009

Um Conto de Natal

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Um Conto de Natal

A laje fria do degrau acolhe-o, deita-se na cama de cartão que restolha o calor dos jornais sempre que se move. São os acordes na noite fria e solitária. Agostinho cofia a barba emaranhada com uma mão trémula, e com a outra, puxa de mansinho o cobertor desbotado mas ainda quente. Oito anos. Oito anos já lá vão. Suspira e humedece os lábios. Enrola-se nos velhos cobertores. Calor de lã em alma nua. A noite vai fria. Dezembro, o mês de todos os meses. Não ri o azul, nem pirilampam as luzes. Dezembro é o último entre todos. Traz escondido nas entranhas o mito da servidão. Ele conhece bem Dezembro. O dos dias apressados. Que se vestem de cor para fingir. Dias encenados chamam-lhes de festa. E já agora, pensa Agostinho, por onde andará a festa? Há oito anos que a espera.

Oito anos.

O tempo é mesmo água. Foge entre as conchas da mão. Só molha, logo escoa. Mancha húmida de vida. Pulsar breve. É isso mesmo, o tempo é água. Suspira. Depois cruza as mãos encarquilhadas de ilusão sob o cobertor de ramagens grenás. Volta-se de lado e cerra as pálpebras.

Uma sirene uiva apressada. E a gente respira no uivo da noite em compasso. Vergastam-se nos passos ao mesmo tempo que respiram entrecortados. O rumo dilui-se no prumo da rotina. São as marionetas do mundo. Alguém sabe lá quem, manipula cordéis dançantes. Dizem chamar-se Deus. Bah, quem será? Desconhece o Sujeito. Agora a gente, essa, ele conhece. São os moldes. Em gesso liso ou pregueado. O molde é a sua realidade. De Deus dizem a sua percepção. Mas os sentidos sentem-se nauseados. É assim que os vê, é assim que os mede. Observa e divaga, os seus companheiros, chamam-lhe Agostinho, o Filósofo.

Por vezes sente-se ufano do título, uma mão cheia de comiseração feliz. Uma ironia! Dirão os mortais comuns, mas ele não é comum é Agostinho Sem-Abrigo- Filósofo. Um pobre rico. Por isso gosta daquele canto, escuro. Ali entre a lã do cobertor e o papelão deitado em folhas de jornal, viaja no carrossel das suas próprias andanças, os altos e baixos da sua mortalidade. Olha para a feira do mundo, sorri condescendente aos seus moldes. E eles sobem, e descem por entre os cavalos, e duendes na viagem da procura. E giram, giram no carrossel. Agostinho vê, Agostinho pensa, Agostinho recolhe-se.

Oito anos.

A cidade dorme a seu lado, a cidade acorda a seus pés. Poder num homem sem glória.

O sono encavalitou-se nos pensamentos e não quer descer. Humedece os lábios secos. Cobre o rosto com o cobertor de ramagens grenás. Escuta o roncar indignado da barriga e sorri. Depois naquela beatitude que o sono provoca embala-se. Mergulha num mundo azul. Sente-se pairar algures entre o céu e a terra. Um silêncio feito de sons vazios. Senta-se displicentemente no outro lado do mundo, expectante, contemplando castelos de algodão estrelados. São belos. Tão belos que os olhos choram. O fardo dos anos e a condição humana despiram-se. Sente-se leve, leve.

Mergulha naquele embalar de vazio. Ali não há tempo nem memórias. Somente o fluir do espaço entre duas mãos de sentidos. Agostinho está leve mas pleno.

A sonolência torna-se a sua realidade. Olha em redor uma vez mais. A imensidão, o espaço fá-lo tremular. Mas quase a seu lado uma figura move-se. Não existem quaisquer espasmos naqueles movimentos. Uma certeza precisa, um controle absoluto. A imponência envolve-a. A figura abre-se e encapa o nosso homem. Agostinho sente o calor que perdera algures numa esquina do tempo. Procura o rosto da figura. Não encontra. Há matéria sem carne. Há vida sem sangue. Há forma plena de vazio. Treme-lhe o corpo, agitam-se-lhe os sentidos. Vê-se na sua posição fetal. Enrolado, temente. A expectativa do esforço invade-o. Tenta esticar os membros, porém uma força impede-o. Retorna à posição primeira. A fetal. A do mundo. A mente flui rebolando-se por entre as escarpas do antes, salta veloz para o presente. Pára antes da porta do futuro. A luz sorri ao momento.

Um amplexo de calor onde os braços se pressentem sem se sentirem. Uma chama, uma onda, um vibrar surpreendente transborda-o. Acorda-o, alenta-o. Sacode a cabeça num movimento forte que rompe tudo Um feixe, um halo e o seu corpo macerado de anos e humilhações desnuda-se. As labaredas vivas ferem-no suavemente. A sua nudez é a sua roupa. A luz perpassou a matéria.

Restolha a alma. Brilham os olhos. Sente o coração. Sente-o crescer. Crescer, redondo, vermelho, forte e belo. Tão belo, tão forte que o cativa. O coração é ele, ou ele é o coração.

Cá em baixo ,o carrossel de luzes continua a rodar. Mais uma volta e outra, e outra ainda. A próxima paragem é já ali na esquina e chama-se Natal.

Então o coração desliza do amplexo e pulsando no seu vermelho sangue, quente e vibrante cai misturando-se entre os homens.

No degrau frio um cobertor de ramagens grenás repousa sentado. Alguém passa, alguém o olha, alguém o colhe.

Amanhã é Natal!

Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade!


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10 comentários:

Mar Arável disse...

Texto de escrita excelente

num natal sempre frio

um frio

que não é para todos

tiaselma.com disse...

Mereces mesmo todas as poesias do mundo, Mateso Azul!!!

Beijocas de sua leitora.

Ricardo António Alves disse...

Gostei muito do tom.
Gostaria de lê-lo em papel (os ecrãs, bof!...)
Feliz Natal <:)}

MS disse...

Um texto belo, profundo, sensível... como sempre!

'...Um amplexo de calor onde os braços se pressentem sem se sentirem...' - para todos os 'desprotegidos' da família ou da sociedade :(

Aqui deixo, querida amiga, meu abraço bem fraterno de sereno Natal!

Um beijo afectuoso,

as velas ardem ate ao fim disse...

Recusemos a ideia do Pai Natal em que os desejos caem do Céu.

Ousemos acreditar no Pai Natal como ideia de esperança e confiança sem limites.


Feliz Natal!

C Valente disse...

Santo Natal Com saudações amigas

addiragram disse...

Um bom Natal e um 2010 com esperança.

Um abraço grande

Maria P. disse...

Um Feliz Natal,todos os dias...


Beijinho*

~pi disse...

perfeita coreografia,

[ concreta de todos os sentidos,





beijo, abraÇo,





~

as velas ardem ate ao fim disse...

Lembra te:

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
[Carlos Drummond de Andrade]

Bjos Bom Ano!