Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

28 agosto, 2009

Cálice

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Cálice

Um vestidinho branco. Umas fitas azuis. Uns sapatos brilhantes que teimam em baloiçar nuns pés maravilhados pela vaidade. Um rosto cândido. Uns olhos cor do mar saltitando entre um narizito meio arrebitado. Menina.

Levanta-se. De mãos em prece, olha de viés. As campainhas já tocaram. É tempo de comungar. Direitinha e serena, a menina pisa com os sapatos novos o chão gasto da igreja. Sorve o cheiro das velas que mareia o ar, mais as flores, mais as orações. Tudo. E a menina de vestidinho branco caminha leve e serena de mãos em prece. Enlevo de emoção.

Por entre os vitrais bailam os raios, que logo se escoam em feixes azuis, vermelhos e amarelos, quais tochas de farol alumiando as almas nos corpos estáticos Já no altar trajado de branco, o cálice refulge, a menina olha, pestaneja, vai segura, ajoelha então. No olhar azul há devoção. Ergue-o para o alto em cântico de inocência.

A menina freme.

O vestidinho branco espraia a saia no sangue dos degraus. Vermelho veludo. Entreabre os lábios doces. Toma Cristo. Suave, suavemente plasma-o na língua. A saliva envolve-o. Temerosa deglute o Senhor.

Corpo de Cristo

A menina recolhe-se.

Cá fora os sinos repicam por entre o aguado da manhã. O sol recatado desembrulha a luz num sorriso imenso num céu trémulo de intenção.

Hoje menina, amanhã…será.

Na viela esconsa de luz e podre de sentir, a mulher aperta em trejeito os lábios vermelhos túrgidos de baton. O passeio suporta-lhe o escambo carnal.

A cabeleira fulva de raiz negra caída em desatino pelas costas, deixa escapar mais uma madeixa tapando um olho azul macerado de negro. A tinta esboroada de uma lágrima rolada. Há crueza no rosto pintado em alarido, há lascívia num corpo que suspira agoniado de sexo. Há um distanciamento no olhar, há premência de gestos.

Mulher.

Acena erguendo a mão. As unhas vermelhas lembram o sangue. Corpo de Cristo. Corpo de mulher. Cálice exaurido.

E sorve apressada. O Homem e a luxúria. A premência. O vermelho do momento. E engole, e deglute, e traga. Solavancos do corpo. Átimos de vida. Fusão de ser e não ter. A venda.

Mais um. Deita as mãos às entranhas. Corpo de Mulher aberto. Corpo do Senhor em Dor.

Amanhã será. Hoje mulher.

A luz amortalha-se por detrás da janela, ali junto das camas brancas. Três, apenas. No meio a mulher, a menina, ou a menina e a mulher?

Exangue, vazia, saqueada resvala o gesto num requebro de vida. Ali, a prece não alimenta, o ódio não acalenta. Ali, a vida esvai-se em cada suspiro. E a língua rola seca e cortada nuns lábios embebidos de pústulas. O ar que se some, o calor que abafa. O mundo que se acoita na tempestade de um corpo que se senta já nos degraus da morte. Do outro lado, para além do tabique dos sentidos jaz amortecida a fé, outrora menina inocente.

O dia apaga-se no quadrado de vidro por detrás das camas brancas. A luz, clarão branco, inunda a face da Mulher que veste o olhar de um azul avassalador e o poisa nos outros rostos que debruçados a perscrutam mórbidos de interrogação.

Não sorri, seráfica ergue lenta, dolorosa e devotamente as mãos. Em prece entrega o corpo aguilhoado.

Corpo de Cristo. Ámen.





Lacrimosa - Mozart


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23 agosto, 2009






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Liberdade

– Liberdade, que estais no céu…
Rezava o padre nosso que sabia
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

– Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
– Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga

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No Entardecer dos Dias de Verão

No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão ...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos ...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir ...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLI"

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Summer - Vivaldi
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20 agosto, 2009




"Apenas se vê bem com o coração, pois nas horas graves os olhos ficam cegos."

Antoine de Saint -Exupéry


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19 agosto, 2009





"
... Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo..."
Fernando Pessoa in Livro
do Desassossego
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Madame Butterfly, Puccini

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15 agosto, 2009

Cutest Teddy Bear por fcphoto.

O Ursinho que veio da Irlanda.

Chama-se Fingal. É peludo, cor de mel e roliço. Os olhinhos, duas castanhas daquelas bem polidinhas e brilhantes. As orelhitas espevitadas, à procura de uma palavrinha, só uma, que percebesse. Nada. Senta-se muito direitinho dentro do saco com laçarote, e por ali se deixa ficar, engolindo, de vez em quando, um suspiro. Mas nada de muito alto para que não dessem por ele.

Fingal veio da Irlanda. E sente-se sozinho dentro daquele saco. Faltam-lhe as irmãs e a mamã ursa. Tinham ficado sentadas na prateleira vermelha, na lojinha de persianas verdes da cor do trevo.

Entreabre a boquita cor-de-rosa, e devagarinho molha os lábios cor de cereja. Tem sede e fome. O seu pelo, cor de mel, está a ficar amarrotado de estar dentro do saco. Uma tristeza.

Mas porque que é que aquele rapaz-homem entrou na loja, olhou em redor, espetou o dedo e mandou embrulhá-lo. Nem tempo tivera para se despedir da mamã ursa e das suas manas. Ainda lhe doíam as lágrimas do susto. E agora está por ali, metido num saco, meio às escuras, cheiinho de medo. Bah! Se um dia pudesse castigar o rapaz homem!

Numa casa de janelas grandes e muitas flores, ouve-se o barulho líquido da água que vai correndo. O rumorejar da Ribeira da Aldeia trás uma música e encanto ao lugar. Aí vive uma menina ladina que faz anos. Chama-se Marta. Martinha dos Caracóis. Ter seis anos é ser gente, quase, quase grande. Não muito, só um bocadinho assim, assim como metade de um dedo indicador de seis anos.

Martinha andava assim meio assustada. Coisas. Crescer era tão difícil. Crescer em duas casas é muito mais difícil. Martinha sabia como era triste. O coração, da Menina dos Caracóis escuros, andava naqueles dias meio apertadinho. De vez em quando deixava pingar uma gotinha de saudade por outros tempos, quando vivia só numa casa, junto do pai e da mãe.

Martinha fazia anos. Teve uma festinha com meninos e meninas, teve o pai e a mãe, teve brinquedos. Um dia feliz. Mas… o dia estava quase, quase a acabar. Martinha teria que se despedir do pai ou da mãe, conforme tivesse calhado, e ir para a sua caminha só com um beijinho de boa noite. E ela que gostava tanto de ter dois beijinhos. Ah, estes crescidos são mesmo complicados.

E assim foi:

O pai da Martinha levou-a para a casa dele, que antes fora dos quatro, porque a Martinha tinha uma irmã. Era mais velha, e mais triste, muito caladinha. Não fazia piruetas de estragos, nem corria de braços abertos. Era uma menina crescida de olhos magoados. Dizia sempre: Ah está bem, Ah, obrigada. Chamava-se Ana.

Martinha. Não era assim. Um reboliço de vida. Estava sempre descontente. Não sabia bem porquê. Parecia-lhe sempre que, o depois era diferente do antes, que faltava qualquer coisa. Nem ela sabia bem, por isso resmungava, e refilava, e chorava, e fungava. Só sabia que tinha que respirar com barulho, muito, para que a ouvissem. Sentia-se, então, mais aliviada.

Pegou no grande saco das prendas e despejou-o no quarto. Ana zangou-se, mas não lhe ligou. Estava outra vez infeliz. Foi pegando ora brinquedos, ora nos livros, e pondo-os assim sem interesse em cima da cama ou espantalhados pelo chão. Estava naquela tira -que- põe, quando deitou os grandes olhos para o cantinho do junto à janela, e viu um saco branco, grande, com umas grandes letras verdes. Olhou. Levantou-se e foi buscá-lo. Arrastou-o até à pilha que estava no chão. Espreitou. Um ursinho! Com aqueles gestos rápidos e nervosos puxou-o cá para fora. Foi um amor à primeira vista. Tão macio, tão quentinho, tão docinho. Tão lindo, tão, tão…

-Ana, Ana olha, olha um ursinho lindo!

-Ah pois é. Gostas, dele, gostas? Que bom. É a prenda do Miguel, o primo-grande. O pai pô-lo aqui. Ficou esquecido. Deixa-me ver. Tão fofinho! Tem uns olhinhos tão meiguinhos. É mesmo um amor. Que bom Martinha! Olha, olha ele tem nome… chama-se, deixa-me ler é Fin…Fing…Fingal. É Fingal, Fingal, é isso. Esquisito!

-Ah….Pestaneja rápida como se o torvelinho de ideias dançasse muito depressa na cabeça de caracóis… Ah, eu… eu…olha, eu gosto! Responde Martinha -É isso, vai ser Fingalo.

-Não é Fingalo Martinha, é Fingal… Não percebes nada.

-Oh isso é que percebo, e depois ele é meu, e vai ser Fingalo. Pronto. Sou eu que mando! Já está!

-Tá bem tá bem, não te chateies… eu só estava a ajudar…diz-lhe Ana.

Fingalo respira fundo. Não percebeu nada, mas está feliz por estar entre as duas meninas e fora do saco. Já pode respirar. Gosta daquela boneca-menina de caracóis que o aperta muito, e lhe vai dando beijinhos. Sente-se quentinho, já tinha saudades de um miminho. Já tinha, já. Ai! Ai! A sua mamã… uma lagrimazita assoma ao canto do olho cor de avelã, mas depressa esconde o focinhito entre o peito de Martinha deixando-se cavalgar nos gestos doces da menina. Depois de muitos pinotes, suspiros e brincadeiras, Martinha está deitada na sua caminha branca de lençóis de aventuras. A seu lado, bem juntinho está Fingalo. Um bracito roliço aperta-o. Esta menina é mesmo uma coisinha fofa. Ele sente-se tão bem.

A noite vestiu já o seu pijama de estrelinhas e meia-lua quando Martinha ouve:

-Ó menina dos caracóis, eu gosto muito de ti, sabes?

Meia ensonada Martinha lá responde:

-Deixa-me lá dormir, estou tão cansadinha…

-Eu só queria conversar um bocadinho contigo assim enroscadinho. Sabes? Eu estou muito sózinho, estou longe da minha mamã… aiiiiiiiiiiii tenho tantas saudades, até me dói o coraçãozinho…se dói!

-Hummmm…

-Sabes Menina dos Caracóis lá na minha terra temos coisas muito lindas, temos fadas mágicas, e duendes, e potes de ouro, sabes? É tão linda a minha terra! Ai que saudades.

-Ó ursinho cala-te, eu quero dormir…

-Está bem. Boaa noiiiteee!

Fechou os olhinhos, meteu a línguita rosada de fora, enrugou o narizito de azeitona e deitou as mãozinhas bem papudinhas às pontas do laçarote de quadradinhos verdes que lhe pendiam sobre o peito cor de mel, enrolando-as à laia de caracol. Bocejou, revirou os olhos de avelãs, e pronto, adormeceu.

E os dias foram passando. Fingalo andava numa sarabanda nas mãos de Martinha. Mas à noite, quando ambos se deitavam, então as histórias dos duendes saltavam para os lençóis cor de sonho e aventuras.

Martinha habituou-se às conversas do seu amigo. Não estranhou que ele falasse, não estranhou que, ele se sentisse assim como ela, meio sózinho, meio perdido.

Ora um dia, melhor uma noite, daquelas em que as estrelas têm a triste ideia de irem namorar para trás da lua, Fingalo estava muito infeliz, encostadinho a Martinha suspirava, suspirava.

- O que tens Fingalo? Perguntou-lhe a menina, muito baixinho quase um cochicho., porque Ana já andava a contar que, ela falava de noite na cama, e se ria, e que a acordava quase todas as noites.

A mãe, por essa altura estava em casa da mãe, perguntou-lhe o que se passava, ao que ela respondeu com aquele brilhozinho nos olhos e voz meiguinha:

-Nada mãezinha, eu cá não me lembro de nada. Nem sabia que falava. Se calhar a Ana anda a sonhar.

As coisas que uma cabecinha de caracóis pensa para esconder o seu segredo. E naquela noite, escura e ventosa, Fingalo contou-lhe esta história:

Um dia Mayo, o duende estava sentado no seu banquinho cozendo os sapatinhos de Fang, a rainha das fadas, zangado e resmungão como era seu costume, deitando palavras azedas para o ar. Tanto rezingou e fungou que as palavras já cansadas de serem cuspidas para o ar de modo violento, acharam por bem espalharem-se pelo chão. Era uma coisa feia de ver, porque eram ásperas e magoadas. Não sorriam. Eram todas cinzentas, castanhas e pretas. Uma tristeza. Depois assim deitadas em reboliço davam um ar de desalinho. Mayo, continuava na sua resmunguice e nem reparava no que ía pelo chão da sua loja.

Quando acabou de cozer os sapatinhos lindos de Fang, levantou-se, desatou o avental e a rezingar deu um passo em frente e zás tropeçou numa coisa áspera que o aleijou. Praguejou ainda mais. E sem olhar para o chão deu um passo, tropeçou e pumba estatelou-se no chão, espetando o nariz bem afiado contra a sovela, que por ali se entretinha. As palavras que se embrulhavam sonolentas no chão, despertaram todas ao som do trambolhão e, ao verem a cena desataram todas a rir. Pasme-se. Começaram a ficar todas rosadas, amarelinhas e brilhantes. Num impulso levantaram-se, bateram as palmas e felizes começaram a dançar à volta de Mayo que continuava estatelado no chão com a ponta do nariz feita numa bola vermelha de inchada.

Irado que estava, nem a dor sentia. E aquelas coisas que lhe zumbiam à volta do rosto nem ele sabia bem o que eram, pareciam-lhe palavras que esquisitas que eram! Todas escuras de um lado e com cor do outro. Só lhe faltava a ele, o duende, ter que suportar as palavras a dançar. Pensou, mas à cautela não disse. Porque Mayo era esperto e já estava a adivinhar de onde é que elas tinham vindo.

Devagarinho, olhando-as de soslaio, lá se foi levantando. Já em pé, deitou a mão ao narigão vermelho, ajeitou as suas calças bem verdinhas, compôs a sua casaca de botões de latão bem amarelos, alisou os cabelos de prata, e todo afeitado inclinou-se, estendendo a mão para o chão, que rápida recolheu duas palavras. “Não quero”, baixou-se de novo e apanhou mais três.”Idiotas”, “estou farto”.

O duende sentou-se pasmado. Olhou para todas e começou a ler:” raios partam,” “estúpido”, “não faço”, “vão passear”, “tenho mais que fazer”” c’um caneco”, etc., etc.

Tudo o que ía dizendo, enquanto trabalhava, estava ali no chão da sua loja. A sua resmunguice e aleivosia.

Rápido pegou na vassoura de giesta para as varrer. Porém, quanto mais varria, mais elas cresciam, cresciam. Estavam já com metade da sua altura. Refilou de novo, e outras pequeninas apareceram. Parou. O que fazer? O que dizer? Dizer? Nada, nada, senão… Só pensar, mas alto aí, pensamentos bons não fosse o caso de começarem a nascer também …. De boca fechada, apertando bem os lábios finos, para não sair mesmo nada, começou a ajeitar as palavras num montinho, assim bem redondinho. Viu que quando as tratava com meiguice elas ficavam moles, moles e, entorpeciam. E até se tinham tornado bonitas, tão brilhantes, com um sorriso nas faces., as suas palavras. Devagarinho, bem devagarinho com uma pontinha de meiguice colocou-as num cestinho bem redondinho. Não ía ali, deixá-las assim. Dormiam profundamente. Decidiu-se: Foi até ao seu quintalzinho de trevos onde os narcisos sorriam. Num cantinho bem debaixo da macieira florida, abriu uma cova que forrou de flores e folhas. Cheirava tão bem. Uma a uma deitou as suas palavras adormecidas. Tapou-as com mais flores e folhas. Deixou-as assim aconchegadinhas na terra.

Os dias passaram, e as palavras não acordaram. Continuavam sorrindo rosadinhas no seu soninho.

Mayo, por esta altura já assobiava enquanto cosia os sapatinhos das fadas. A sua loja que anteriormente era escura e triste, tinha gora todo o santo dia o sol a bater-lhe, até tornando-se muito mais quentinha. Até o pintassilgo vinha trinar-lhe os bons-dias. Os outros duendes paravam, espreitavam e saudavam-no. Mayo respondia sempre:

- Um Feliz dia, meu Amigo!

E os outros respondiam-lhe sorrindo: - Para ti também, Mayo.

Entretanto começou a crescer na cabeça de Mayo uma ideia. Iria fazer um belo chàrn.

No domingo seguinte, quando o sol espreitou entre a bruma líquida, Mayo levantou-se, vestiu-se, e dirigiu-se para o seu quintalzinho. Estava todo em flor. As letras continuavam adormecidas e rosadas. Debaixo da macieira de flores brancas. Voltou a fazer-lhes a cama, desta vez de flores rosadas de pessegueiro, alguns lírios amarelos e muitas folhinhas de quatro trevos. Estavam lindas. Depois foi até ao rio e tirou os seixos mais perfeitos, brancos e rosados. Foi e veio muitas vezes até ter um pilha cor-de-rosa e branquinha. Depois começou a tapar a caminha das letras. Uma aqui, outra ali até estar um montinho bem redondinho. E assim foi, dia após dia, acrescentava uma pedra cada vez mais linda à sua chàrn.

Martinha puxou-lhe pela bochecha, numa vozinha muito doce, perguntou:

- Ó Fingalo diz-me lá, o que é uma chàrn? Eu nunca ouvi.

-Pois é … é… é… olha, pergunta à tua mamã amanhã… tá bem?

-Tá bem eu pergunto, continua lá com a tua história linda…

Dizia eu, que Mayo o duende, todos os dias trazia uma pedra cada vez mais bonita do que a do dia anterior. E o montinho ía crescendo, crescendo. Era lindo, tão lindo. Quando o sol lhe batia soltavam-se estrelinhas de luz e, à noite, quando a lua se vinha sentar lá no alto, mesmo por cima das pedrinhas, as estrelinhas formavam letras que dançavam. Ouvia-se uma música suave que encantava o lugar. Era a magia. Mas o que era espantoso, mais espantoso de tudo era que Mayo estava cada vez mais contente, mais jovial. Da sua boca soltavam-se apenas palavras doces, mágicas e sorridentes. Por aqueles dias tornou-se num duende gentil e muito educado. Passou a ser o duende mais folgazão da Irlanda.

Foi assim que a primeiro chàrn nasceu, foi assim que as palavras feias adormeceram, foi assim que Mayo duende mais feliz de toda a Irlanda.

- Fingalo, a história já acabou?

- Já, Menina dos Caracóis.

Martinha deu um beijinho no seu ursinho, fechou as persianas do olhar e pôs-se a pensar com os seus botões: “Pois, eu também sou resmungona, fico triste e tenho assim uma onda quente que rebenta. Se me acontece o mesmo que ao duende? Se começo a cuspir palavras feias? Ai que feio! Depois ainda me gozam. Não, não pode ser assim. Tenho que me emendar, ai se tenho, tenho…

Amanhã pergunto à mamã o que é um chàrn, é isso…é…, agora estou com muito soninho...Aahaha…

No dia seguinte bem de manhãzinha levantou-se, arranjou-se e foi sentar-se à mesa do pequeno-almoço na cozinha muito caladinha, com um sorriso de orelha a orelha. A mamã que não estava muito habituada aquela Martinha tão bem disposta, olhou-a uma vez, duas vezes e pensou lá para ela “ deve estar a rebentar alguma coisa… deve, deve.

Ouviu-se, então, uma vozinha muito meiguinha saída de uma boquita, que o leite com chocolate tornava ainda mais doce, a pergunta:

- Mamã o que é um chàrn?

A mamã enrugou a testa e engasgou-se. Olhou-a muito fixamente e perguntou-lhe:

- Onde é que ouviste isso Martinha?

-Ah mamã foi, foi … na Escola.

- E não te explicaram?

- Eu não ouvi. Mas o que é mamã?

- Olha Martinha é uma palavra celta muito antiga e quer dizer Mamoa.

- Mamoa? Mamoa, …Mamoa como a de Sta Eufémia? Aquela que fomos quando ainda estávamos todos juntos, o pai, tu e nós? Aquele passeio na serra?

- Isso, Martinha.

-Ah, já percebi!

Desde então, a Menina dos Caracóis guarda num cantinho do jardim pedrinhas brancas que vai apanhando. São as palavras zangadas, que de vez em quando se escapulem. Martinha é já uma menina muito alegre, chispando alegria nos olhos brilhantes, nas covinhas das faces rosadas, ou no sorriso ladino de uns lábios de cereja.

E para acabar esta história, digo-vos que Fingalo continua fofo e cor de mel, dormindo entre os lençóis de aventura, Martinha a menina dos caracóis permanece um derriço de meiguice a seu lado, e que as histórias de lendas e duendes continuam a fazer os seus caracóis dançarem no vento da imaginação.

-Aahaha já é tarde. Boa noite meus meninos!


Barcarolle - Peter Ilyich Tchaikowsky

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