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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

03 fevereiro, 2009



Era uma vez...

Dom Quico Salafrário um cinzentão meio pelado de olho vivo que andava há já muito horas neste salsifré de mundo. Um sabido, que gostava de abanar a cabeça ao compasso das modas do tempo. Para a fotografia piscava os olhitos, arrebitava as orelhas já meio peladas, abanava a cauda e mostrava a dentuça amarela dos dias. Ah perdoem, faltava-lhe o adorno mais precioso, o chapéu de palha ornamentada por uma colossal rosa de papel vermelha, que por aqueles dias se encontrava fanada de cor e forma. O velho chapéu tingira-se de um amarelo velho, aquela mesmíssima cor de palha já afeita ao sol eirado de muitos anos. Eis, pois, o retrato único e autêntico deste cidadão singular.

D. Quico, o burro!

Naquela tarde límpida de azul e prenhe de calor, conversava D. Quico amenamente com os seus comparsas sobre as últimas do povoado, quando não se sabe vindo de onde, uma pega rasou-lhe a prazenteira cabeça, e, num ápice surripiou-lhe a fanada rosa vermelha do chapéu. Furioso, apanhado de surpresa, roubado na sua vaidade, Dom Quico, arreganhou os dentes e zurrou, zurrou com a paixão da sua nobre estirpe. Burro que assim zurra é burro fino, porque nestas coisas, burro calado é burro corriqueiro, burro zurrado é burro importante. Sem querer, D. Quico ao exibir a sua cólera desembuçou a sua importante linhagem. Francisco fora baptizado, porém, rapidamente passou a Quico, porque o vulgo é Chico, e Chico só para o burro comum o calado e sofrido. Os pais de D. Quico, D. Frederico mais conhecido por D. Rico, pois que o burro fora bem esperto e nupciara com D. Bábá, filha única já entradota mas com um património jeitoso. Diziam as más-línguas, que o sogro, na pressa de se ver livre da filha emperrada, duplicara o dote. Fosse como fosse, D. Bábá com mais ou menos dote gerou D. Quico e Dona Cereja.

Dois burrinhos.

Perdão, dois rebentos prodígio, vulgo, sobredotados, sobretudo D. Quico. Ninguém se apercebeu daquela inteligência intermitente, típica de um asno de linhagem e que o guindou à Zurral Assembleia. Aí colocou a sua prosápia ao serviço do Zé-burrinho. Dona Cereja, porque era fêmea e, porque aos animais as cotas ainda nunca aproaram, foi sempre tida como diligente, aplicada mas longe do brilho zurrante do seu irmão. Foi um prodígio quando casou bem, teve pequenos asnos e foi cautelosamente feliz

E D.Quico?

Andou à deriva e mariposeando de burra em burra até que inteligentemente se apercebeu que os anos já lhe pesavam e a agilidade acasaladora de outras primaveras começava a emperrar. E, porque como se já se disse, era um prodígio teve a suprema inteligência de arranjar companheira. Uma burra doce, bom parideira, jeitosa. Titá de seu nome. Porém quis o destino que a união fosse fugaz. Divergência de zurros. Alegaram nas instâncias da lei.

Porém D.Quico Pai foi extremoso.

A vida foi saracoteando de burricada em burricada, até ao crescer dos filhos, aos estudos e consequentes formaturas. Não pasmem pela vida académica dos burros. País que é país, na vanguarda de todas as tecnologias, esforça-se pelo futuro das suas gerações. Sejam asnos, prodígios ou simplesmente comuns. Por isso é que entre nós, os burros como o D. Quico falam, têm chapéu, família e até gozam de estatuto. Um renascer de almas num País- fábula.

Voltemos, então àquela tarde salobra de calor. D. Quico furibundo bate impiedosamente com os cascos na calçada, que dado o calor da hora, se encontrava deserta de almas, que não, as dos seus mais chegados compadres.

-D. Quico acalme-se, pede-lhe o tremelicado Chico Asno

-Acalmar-me? Então não querem lá ver! Fui roubado, roubado! E por uma pega! A minha rosa vermelha! Fica sabendo, Chico, que foi a Senhora Mãe-Burra que ma ofereceu no dia do meu casamento, o que eu gostava dela! Faz parte de mim. Era a minha imagem. A rosa.

-. Oh Quico vá lá, não te exaltes assim. Ainda te dá uma coisa. Aconselha-o Jericote Palhunça, seu compincha de muito trote.

- Pois, pois. Não estou em mim. Uma pega! A minha rosa! Fui roubado!

- Tem toda a razão. Para que quererá uma pega uma rosa? Prá cabeça não será, cogitou Chico Asno.

- Também não percebo, tartamudeava D. Quico Para quererá, a pega, uma rosa?

- Ó homem deixa-te de lamúrias, já pareces o Dom Acha. Uma rosa? Inda por cima fanada. Não interessa a ninguém, só às pegas. Sabes que elas roubam tudo, mesmo que não preste. Está-lhes na massa do sangue. Depois não és um burro elegante, não gostas de andar “au dernier cri”? A manhã antes de ires para a Zurral Assembleia passas na loja da DG e compras um chapéu novo. Certamente que a flor será mais estilizada, menos demodée, quiçá um pouco escanifobética mas isso meu amigo é fruto dos tempos que correm. Rosas e cravos tal como os conhecemos desapareceram. Presentemente tudo tem mais design.

-Se tu o dizes Jericote. Vou acreditar em ti.

- Pronto amanhã vamos os dois ver um chapéu novo. E depois de o colocares, aí Quico é que te vais sentir o burro mais elegante de todos nós. Aliás, deixa que te diga, querido amigo, todo esse garbo ainda te vai guindar a altos cargos, sou eu que te digo. Sei do que falo.

-Faço figas, faço figas. Projectos não me faltam. Todos os compadres ficariam protegidos, asseguro-te eu. Sabes, eu acredito sempre no que digo. É a minha mais-valia, caro Jericote.

E foi assim, que um Asinus Europeus agora ornado de chapéu elegante, ágil, vivo, e teimoso, distintivos perfeitos da raça, subiu a ladeira do poder. Conta-se, que subiu, subiu até que escorregou e caiu. Não foi culpa dele. Foi de um asinino qualquer que o rastejou. A calçada do poleiro estava já tão puída que ele não se aguentou e zás, estatelou-se dando cabo das apófises dorsais. Uma tragédia. Ficou inutilizado. Tornou-se amargo na sua solidão. E rapidamente o Zé-burrinho o esqueceu.

Foram os seus netos que me contaram esta fábula. E eu aqui a deixo.

Afinal, meus amigos até para se ser burro elegante, é preciso ter sorte.
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12 comentários:

as velas ardem ate ao fim disse...

Eu adoro burros!Acho que sao lindos!

um bjo

tiaselma.com disse...

Fabuloso!!!

E que delícia o nome Quico Salafrário... Terá aí, em terras portuguesas, o mesmo significado daqui? Salafrário=safado, crápula.A palavra , em si, ao ser pronunciada, já carrega todo o significado, percebeu?

Beijocas.

Tia Selma

Teresa Durães disse...

os burros são lindíssimos. E os olhos?

Anônimo disse...

E viva a SORTE.

Gabriela Rocha Martins disse...

mas há burros e BURROS e burros com maiúsculas são uma espécie raríssima e de características únicas - os "burros mirandeses" .será que Dom Quico pertence a esta ilustre linhagem?



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um beijo

isabel mendes ferreira disse...

da elegância de saber "efabular" com perfeito verbo.




sim!




(obrigada)________muito.

Gasolina disse...

Delicioso.

Desde o baptismo dos personagens aos parentesis do narrador.

E no remate, a moral como pede a fábula.

Vejo-o no seu chapéu novo a rasgar este azul... antes de se quedar ajoujado.

Um beijo Mateso Azul

claras manhãs disse...

Logo quandi li esta lindeza de fábula a achei maravilhosa.
Nada fácil escrever uma fábula.
Não sei bem quem será mais burro, se ele que escorregou, se quem o fez subir os degraus dos altos cargos.
Enfim!

Mar Arável disse...

Mesmo com burros

a minha amiga

faz milagres de boa escrita

Eu me confesso

consigo - tive sorte

Uma delícia o seu texto

Laura Ferreira disse...

E eu vi-o, de facto, com olhos de gente...

Gostei!

C Valente disse...

Gostoso
saudações amigas

Ana Paula Sena disse...

:):):) Adorei!

Parabéns pelo tom simultaneamente terno e satírico!

Beijinhos