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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

01 junho, 2008

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.Memory - Cats
Urze e Giesta V

(…)

Isabel senta-se na bancada de todos os dias. Está presente, contudo ausente de vontade, quebrou-se-lhe o encanto da porfia intelectual, do gozo íntimo da descoberta. Bloqueou, simplesmente. A mente sempre célere assemelha-se a um aspirador em agonia.

Zune, mas não aspira a multiplicidade de mutações que surgem mesmo ali, sob a lente, em segundos de exposição. Hoje o pensamento voa para além do tecto científico. Hoje o coração dita-lhe as hipóteses num teorema ainda não demonstrado. A racionalidade do seu ser treme perante a incógnita. Não estava preparada para este desafio. O seu rosto onde a serenidade sempre foi uma mais-valia, está inquieto. A mobilidade contraída dos maxilares estende-se ao rictus dos lábios que se pressente crispado, pese o sorriso afivelado à laia de cartão-de-visita. A situação apanhara-a desprevenida. Bem quase. Afasta ligeiramente o microscópio num movimento mecânico, gira na cadeira e olha para o exterior. Olha mas não vê, olha apenas dentro dos seus pensamentos. E analisa. É bem verdade, que ultimamente havia um quase foge que foge de palavras. É bem verdade, que o dia-a-dia feito de correrias, lugares comuns, e pequenos muitos nadas a tinham mergulhado numa rotina doméstica. É verdade, que os filhos mais as suas necessidades e interesses a tinham feito esquecer as de Pedro, e as dela. É verdade que os silêncios se tinham adensado um pouco, mas sempre prática, pensara que era o cansaço, não um do outro, mas da labuta do dia-a-dia. Não lhe passara pela cabeça, que o seu Pedro sempre tão alegre, e cordato, tivesse tomado o barco numa rota enviesada da sua. As certezas da sua vida tinham-se desmoronado num efeito de dominó. Não era justo. Não era a sua luta. Ela, Isabel Meireles lutadora nata, mulher racional, amante terna, mãe solícita, ser humano vivo e palpitante, não queria, não aceitava, este acto na peça da sua vida. O palco continuava lá, imutável na demanda permanente dos seus actores e das suas elocuções, na representação necessária dos seus papéis de vida. Porque alterar uma peça, quando ainda se vai a meio? Não será roubar o sentido e o ritmo da efabulação? Não, ela não vai permitir, pelo menos nos termos que Pedro quer. Não vai, não pode, é algo superior a si, é algo que lhe revolve as entranhas, amachuca o coração e lhe lança vento na alma. Não! Os filhos? Não pensara ainda neles. Agora também não, depois. Tem que analisar o que falha entre ela e o marido. Não se sente culpada, porque não se sente em falta. Não vislumbra uma razão poderosa. Sabe que o trabalho, a carreira a têm absorvido muito, sabe que o quotidiano necessita de tantas premissas, que lhe é imposta uma fasquia à qual tem que chegar, a fim de obter ulteriores benesses, traduzidas em ascensão profissional, e consequentemente qualidade material de vida. O mundo, hoje, amanhece em cada segundo de exigência exterior. É verdade que muitas vezes esqueceu, melhor, colocou para trás prioridades como horas de simples conversa a dois, um descer de rua de ombros colados, um olhar quedo de sentir perpassando as palavras. Errou. Estiolou os segundos. Mas não vai gritar, nem muito menos cravar a sua dor em palavras cuspidas de ressentimento. A garra, o ânimo, a dor são apenas adjectivos que se plasmam nos lábios, vomitados ou cuspidos ou ainda simplesmente rolados de acordo com a personalidade das pessoas. Fazer do pouco muito, como atavio de personalidade, não lhe está na massa do sangue. Estar na crista da onda, apenas porque o seu ego a faz espreitar por entre os outros, também não é seu feitio. Deverá estar errada, pois que, hoje em dia, muitos gritam o vazio de si, pensando que são melhor escutados, no entanto o clamor dilui-se no próprio estertor do sibilar. Está a desviar-se, está a divagar. Não pode, tem que objectivar colocar em fio de raciocínio os últimos anos de casada. Achar o fio e puxá-lo, ou simplesmente dar-lhe um nó para estancar, o desfiar. Alguém lhe toca no ombro. Volta-se lentamente, tenta focar as pupilas nesse outro vulto que lhe está em frente, vê um rosto em branco seguido de uma bata branca. É o branco que lhe dá a sequência ocular. Devagar, inicia a descodificação visual, ao mesmo tempo que, arruma, algures os seus pensamentos. Perfeita dicotomia racio-emotiva. Aqui e agora, o mundo na lamela da ciência. Ali e depois, a vida na concha da emoção, são os andamentos da sua composição.

-Isabel…Isabel estás bem?

-Oh…sim. Claro que sim. Estava apenas a pensar.

- Olha, não te esqueças da reunião logo. Já sabes às seis.

-Não sei se poderei, Jorge. Não sei mesmo. Problemas em casa.

-Vê lá, Isabel. É importante. Tu tens que fazer o relatório da tua investigação laboratorial. Estamos à espera, queremos saber os procedimentos, resultados e conclusões se acaso já lá chegaste ou ainda estás por chegar. Sabes que há muita coisa em jogo, Isabel…

-Eu sei, Jorge, eu sei. Mas tenho também que resolver algo muito importante. Também há mais algo em jogo, que não uma simples investigação…

-Tem cuidado, Isabel. Já sabes como é… não há margem para opção…a razão deve sempre sobrepor a emoção, minha querida. Tu sabes isso… não o esqueças. Lá fora o mundo é outro. Tu escolheste, já lá vão alguns anos.

-Eu sei, eu sei… eu preciso… eu… está bem irei à reunião. Mas serei breve. Peço-te que arranjes de modo a que seja a primeira a apresentar.

-O.K. minha querida. Fá-lo-ei por ti. Fizeste bem em decidir assim. Agradecemos-te.

-Pois será… talvez, quem sabe? Mas não me resolve os meus problemas. Darei um jeito.

Dar um jeito. Não tem sido sempre aquilo que tem feito? Segurar pontas, desdobrar-se, correr daqui para ali, e de lá para cá. Um tempo divido entre a presença e a ausência. Pensar que conjugava o estar mais o ficar, mas afinal, o tempo fora-lhe ingrato. Perdera no meio tempo ,a direcção correcta do seu sentir. A sua bússola interior desviara-se sub-repticiamente e não se apercebera.

Por isso, o que mais fazia um dia, que importância tinha no que já estava inquinado? Nada. Iria à reunião, voltaria para casa, para a vidinha familiar de todos os dias. Deitar-se-ía na cama com o marido, falariam entre monossílabos, adormeceriam lado a lado no calor dos lençóis mais dos corpos e no dia seguinte retomariam o dia anterior apenas acrescido no calendário. Era, e fora a sua vida. Porém agora. Tudo tremia perante um vazio que Pedro dizia sentir e que o afogava. E ela? Por acaso alguém lhe perguntou como se sentia? O correr dos anos desfizera-lhe as quimeras, roera-lhe os sonhos, mas agarrara sempre o que a vida lhe dera, por pouco que fosse. Era a sua índole. Não se estoqueava em questões existenciais, porque sabia que a vida era breve passagem de sentires. A mutabilidade, plasticidade e brevidade do viver tinham-lhe há muito ensinado a aceitar o que recebia. A inquietação dos dias gizava-a na consciência de quase cumprir, o possível.

Levanta-se maquinalmente, ajeita o cabelo e endireita os ombros. O olhar reflecte a gruta das suas emoções, contudo um sorriso afivelado, mesmo que lasso, dá sempre um toque. Vai até á secretária, abre uma gaveta, pega numa pasta ,e num gesto tão pessoal encosta-a ao peito ,como se fora filho seu em doçura de embalo.

São cinco horas da tarde. Mais uma hora e picos e estará de regresso a casa.

No tempo de acrisolar.



Posted by Picasa

16 comentários:

No-Me disse...

Este blog está lindo.

Para ler melhor terei de voltar amanhã. Um pouco mais cedo. Gosto de ler devagar. Saborear. Tudo.

Boa semana.

Ana Paula Sena disse...

Li atentamente este texto e o anterior. Com muito gosto! Parabéns pelo amor à escrita e pelo interesse do enredo acerca da vida de uma mulher tão actual quanto me parece ser esta Isabel, uma verdadeira heróina literária.

Farei por acompanhar o desenrolar... :)

Anônimo disse...

Belo momento que aqui passei. Voltarei com calma, pois esta escrita promete.
Abraços e convites d´A SEIVA e do EU, SER IMPERFEITO.

pin gente disse...

muito bem escrito (já tinha gostado muito da parte anterior).
parabéns.
abraço
luísa

Anônimo disse...

Ia dizer o que já está dito pela Pin gente.

Mas deixa-me só por um pouco divagar.
Esta é a realidade de hoje em dia, ainda?
A mulher para ter carreira, tem de ter como parceiro alguém que nada tenha de educação machista, e isso é muito raro.
As mulheres da minha geração tentaram, muitas, educar os filhos sem lhes dar oportunidade de o serem em casa.
Mas os Pais, esses eram-no profundamente, por isso houve sempre duas imagens, dois exemplos.
Muitas, também achavam que os filhos nada teriam de fazer em casa....

Por isso ser fundamental que quando se começa a vivência a dois, as mulheres, nem por amor, transigirem na divisão de tarefas.
É a educação feita pela parceira, que é importante, nestas alturas.

Rotinas sempre as há, boas e más.
É importante não deixar que as más se instalem.

Desculpa o tamanho do comentário, mas este é um tema que me interessa.

Beijinho

Mar Arável disse...

Na vida não basta ter razão

por vezes as emoções

valem uma eternidade

Sempre bem escrito

e apetecível

Plum disse...

:)***

Gabriela Rocha Martins disse...

o prazer mais do que redondo em continuar a ler a saga de Isabel
um deleite
o querer mais e mais

o saber
o ficar à espera

DE MAIS


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um beijo ,Matezinha

Ad astra disse...

e fico à espera da continuação


beijinho

as velas ardem ate ao fim disse...

Gosto tanto de te ler.sempre.

bjo

Anônimo disse...

"Estar na crista da onda, apenas porque o seu ego a faz espreitar por entre os outros, também não é seu feitio. Deverá estar errada, pois que, hoje em dia, muitos gritam o vazio de si, pensando que são melhor escutados, no entanto o clamor dilui-se no próprio estertor do sibilar."

Finalmente arranjei um bocadinho para te vir ler com tranquilidade e cabeça. Se as primeiras linhas me prenderam de imediato, o passo que cito é-me tão real... Beijo!

addiragram disse...

Uma escrita viva que nos transporta a lugares interiores.Um beijo.

isabel mendes ferreira disse...

Beijo de bom dia.....URZE.



____
hei.de voltar.


espero.



(obrigada)

Mário Margaride disse...

Querida amiga,

Como sempre, presenteias-nos com belos textos. E este, é mais um a juntar a muitos outros, de enorme qualidade, e oportunidade.

Um beijo doce

Mário.

panapunk disse...

La muerte no es el final.

Eme disse...

Nem imaginas como eu compreendo o Pedro.
e a Isabel.
mas como é que se divide a alma sem querer entre o amor à família e à investigação?

este texto dói-me de lucidez Mateso

porque

tantos têm mesmo de optar.
e neste caso parece-me ser tarde demais..

saio de coração apertadito