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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

29 janeiro, 2008

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A fome.

Na madrugada fria, parca de luz e cinzenta de tempo, Rosália puxa o cobertor puído para o rosto, encolhe-se no côncavo da cama, guardando todo o calor naquele breve espaço. São quase cinco horas da manhã. O vento assobia no granito da casa e depois sobe aos vidros e senta-se no velho telhado musgoso dos anos. Encolhe-se mais. Tirita. Não tem roupa quente. Breve casaquito de lã serve de aconchego nas noites geladas. Os pés vestem-se de meias de lã, daquelas grossas e ásperas já recosidas e que serviram nas socas. O marido, a seu lado, também ele em novelo, dorme no ressono da madrugada. Encosta-se na partilha do calor que o corpo teima em não ter. Treme e humedece os lábios ressequidos do ar. Tenta fechar os olhos e apagar os ouvidos, mas o vento tremula lá fora chiando nas telhas partidas. O ar gélido entra pelas frinchas e pelo chão de tábuas finas dos anos. As paredes desenham fantasmas vindos da janela onde as cortinas já gastas dançam ao som da melodia da madrugada. Volta-se mais uma vez, o rangido acompanha-a. O seu Inácio estremunha e diz-lhe entaramelado: -“Tá queda!”

Rosália espiga de centeio maduro e cheio, enrosca-se no seu Inácio e deixa o resto das horas cobrirem a madrugada. Quando o sol pálido despir o casaco do céu, ela terá que se erguer, acordar os pequenos, arranjar-lhes a merenda, fazer a cevada, dar um jeito nas camas, pôr umas batatas descascadas no pote e juntar-lhes a água. Depois é descer a rua e entrar no carreiro até lá baixo. Sempre a descer quase até á orla do rio, até ao lameiro. Hoje há que cegar o azevém. É sua a tarefa. Já de avental posto, socos calçados, lenço amarrado, casaco cinzento, velho e gasto a aconchegar os ombros de carnes já fugidas. Rosália dá a salvação aqui e ali, pergunta por um ou outro, e sempre sorrindo num trejeito de lábios presos, continua caminho abaixo.

Vê a sua terra ainda pestanejando na neblina da manhã. Está ainda parada. Pouco trémula. Apenas o ar é fresco de límpido. O rio corre tão manso que nem bule. Também dorme. A sua cor ainda não está destapada. Olha em redor e suspira. Chega-lhe o cheiro das couves que parecem abanar, da terra que se destapa, e das heras que se sacodem nos muretes de granito velho e tosco.Sente-se prenhe da sua terra, do seu chão.

O lameiro sorri-lhe no verde da manhã, acompanhado pelos ramos de umas poucas oliveiras já aliviadas do negro. Suspira, pega na gadanha e curva-se no corte rente do azevém. Assim despida de roupagem verde a terra suspira, recolhendo-se. Rosália torna a lide maquinal, num movimento circular de braço, ombro, braço, ombro, como se fora espiral. As mãos fortes e gretadas, onde os sulcos do trabalho se abeiram das veias, compassam a lide em apertos de raiva. Mais á frente ergue o tronco, endireita os ombros, e desafia com um olhar o ar que a rodeia. Perlam-lhe a testa e as fontes, gotículas que lentas escorrem adentro. Afasta pequenos fios loiros que teimaram em escapar do lenço, e estão agora empapados. Direita de gadanha na mão, olhar firme e ávido de muito, estica o braço esquerdo e aponta, algures, no espaço longo de azul forrado, zurzindo as sílabas: -“ Sacana de vida!” A gadanha silva o ar, depois descai como se fosse tomada por um soluço. Deixa cair os braços e retoma a faina.

Nestes momentos de solidão, pode, e extravasa toda a sua revolta, asco, e fúria. Ainda estão vivos os outros tempos, quando trabalhava na pequena empresa, tinha o seu salário, o seu Inácio também. Viviam na vila num apartamento cómodo. Os pequenos, dois, quase seguidos, porque assim os tinham planeado, estavam na creche. Tinham a sua vidinha. Não eram limitados nem iluminados. Eram gente viva de um povo. Porém a empresa começou a ir-se abaixo, depois de percalços de salários atrasados, acabou por fechar. Despedidos, com contas para pagar, só tinham tido uma única solução. Voltar para a aldeia, para o quase casinhoto dos pais dela, já fustigado pelos anos e tempo. Sem quase condições. Fora um recomeço amargo. O recomeço destes novos tempos onde a vida se torna mutável de vazia. Fizeram umas obras, umas pequenas coisas, ela tinha esfregado, esticado e puxado. Voltado aos tempos quase de antanho. Mas as crianças tinham sido talvez as mais doridas. O seu pequeno mundo tinha aberto uma brecha nas cores da quase perfeição. O Inácio trabalhara á jorna mais uns biscates de inicio. Agora já tinha um empregozito numa oficina, coisa que ele detestava, pois o coitado era mais de papel do que de mãos, mas tinha que sacar o dinheiro para alimentar as crianças. Quantas vezes, a sua barriga dera horas e troara de vazio? Tantas, a sua e a do seu Inácio. A fome batera-lhe á porta quando se dizia que o mundo avançava. Não era de grandes tiradas de pensamento, mas achava que algo andava mal na cabeça dos governantes deste país. Olhava em redor e só se ouviam queixas, dores. Os sorrisos estavam fechados, as pernas tornavam-se mais trôpegas. Não, não era a idade, era a vida, a sacana desta vida, parida de ais e uis! Cospe de raiva. Despeja o amargo que lhe vai nas entranhas.

A manhã já vai alta. Acama o azevém para o seu Inácio o carregar mais tarde. Os animais já têm ração. O pior é as gentes. Inda hoje vai ser um caldo e umas batatas. Está-se quase no fim do mês e o dinheiro é curto. A janta é sempre um pouco melhor, há que alimentar os pequenos e a vergonha de mãe impede-a de lhes negar uma refeição quase normal. São tão finos os seus pequenos. Duas cabeças castanhas, e quatro-olhos cheios de luz abertos para a vida. Como impedi-los ainda de sonhar? Mãe que é mãe, não faz, não pode fazer isso. Quantas vezes na cama rangente, do seu quarto despido, chorou com o seu Inácio, desesperou pelo dia seguinte, suplicou por pão. Tantas, Senhor! E os olhos orlam-se de lágrimas, não são doces, são amargas, agudas, viscerais de ácidas. São lágrimas de mãe e de mulher.

Sobe lenta o carreiro, o avental vem enrolado no sujo da terra. As mãos poisam de doridas nas pernas que avançam. Um passo, mais outro, e outro. Os socos matraqueiam nas pedras aqui e acolá. É seco o calcar, pesado de sentir, agitado no movimento. Rosália avança ao compasso dos pensamentos. Entrechocam-se as imagens passadas com as presentes, apenas as do futuro são nadas, vazios sem moldura.

-Será que a vida tem que ser assim? – Murmura. Será? Tão dura e áspera, porquê?

Que país é este onde as suas gentes sofrem o amanhã de cada dia, como se tivessem que expiar os erros daqueles que sentados á mesa do poder se empanturram de tudo esvaziando as cestas daqueles, que como ela joeiram o pão-nosso de cada dia?

Rosália bebe o ar fluido da manhã já quase morna daquele inverno da sua tristeza. Os dias ocos de esperança, frios de sonhos e acres de luta no rol do tempo nu de futuro. As gentes, as crianças, tudo tem fome de futuro. Fome negra, ávida e ansiada, fome desejada, fome de esperança, fome de sorrisos, de rostos abertos e corações leves. De baladas cantadas na alma de um povo!


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18 comentários:

un dress disse...

tantas questões colocadas

a um país

frio de sonhos.

retrocedente.


tantas...todas sem resposta.



.beijO

... disse...

Posso chorar? posso revoltar-me? posso sentir? é impossível não sentir a angústia que tão bem mostra nestas palavras. Extraordinário!

Maria P. disse...

Excelente!
Impressionante capacidade de descrição e criação.

Beijinho*

MS disse...

Vim só para agradecer muito sensibilizada o teu olhar sempre amistoso em 'fragmentos'!

Momentos 'diferentes' me impedem de exprimir algo mais!

Lamento profundamente que tenhas atravessado momentos similares.
O meu abraço muito sentido e fraterno.

Até breve!
Um beijo

Natureza disse...

um texto tão bonito com uma realidade tão triste!

Ana Pallito disse...

Escravatura repaginada.

Porcos!!! E basta

addiragram disse...

As palavras sentidas são gritos de revolta contra o adormecimento quase geral.
Um conto "quase"neo-realista!
Um beijo

Maria Laura disse...

Não sou muito de me comover facilmente, mas este conto pôs-me lágrimas na alma. Por este povo. Por tantas Rosálias e Inácios. E que bem, que extraordinariamente bem escrito!

Plum disse...

Excelente, consegui sentir cada palavra!***

Andreia disse...

Ora aí está uma pergunta que nos devíamos fazer todos os dias: "que país é este?"... Podia ser que as coisas mudassem um bocadinho...

Beijo!

Mar Arável disse...

Uma vez mais um texto de excelência - arrancado do país real
- um texto que não cala - freme
e aponta - contra a indiferença.

Rosália - meu amor

bjs

carteiro disse...

Não me permitem os olhos, a estas horas, dar a atenção que mereces à leitura, mas nem estas me impediriam de dar um pequeno passeio por este trilho. Irregular, como todas as perfeições.

eduardo jai disse...

realismo mas com uma doçura de cores quase disfarçada.

gostei muito do quadro.
um dia BOM.
:)

as velas ardem ate ao fim disse...

depois de limpar as lagrimas, o meu aplauso!

bjo

Gabriela Rocha Martins disse...

chegada em fim de dia
de década
de ano
muito especial

fico
parada

lendo
relendo

e
batendo
palmas

é
preciso
ter fôlego
e
fome
de
gente
para
se
escrever
assim

tudo
o
mais

é vento
ruim


obrigada
por
esta
Rosália
em
dia
tão
vivido
em
mim


.

um beijo

C Valente disse...

A fome da Rosário como de tantos outros portugueses,
Imagem viva
Boa semana de Carnaval com alegria, e boa disposição
Saudações amigas

Gi disse...

Mulher coragem esta tua Rosália, retrato de um país que , só os mais inocentes, ou menos esclarecidos ainda se permitem ao luxo de sonhar.

A todas as fomes que referes, parece-me que a Rosália também tem fome de amor.

Tocante a tua história. Como sempre

Um beijo grande.


Precisava desta disponibiidade para te ler, como mereces.

outro beijo

nOgS disse...

Texto forte.

Despes-nos com palavras...

Um abraço forte.